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Música clássica decodificada

Fazer música: um ato de amor?

Tendemos para a felicidade com a mesma força com que objetos tendem ao seu centro gravitacional. Ninguém busca, em consciência, a infelicidade. Mesmo em casos extremos como o suicídio, a pessoa insatisfeita credita estar buscando a felicidade livrando-se de uma vida que, erroneamente, considera insuportável. A fidelidade, como afirma a psicologia, é a contraprova. Ninguém aceita uma declaração de amor "Eu te amo com dois terços do meu coração" ou "Eu te amo com todo o meu coração, mas só até o ano que vem". É como se o amor, base da fidelidade (entenda-se felicidade), pedisse integralidade, totalidade, entrega completa.

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Por Alvaro Siviero
Atualização:

"Minha vida afetiva está malograda: já vou pela terceira esposa. A primeira foi-se embora com outro; a segunda, fui eu que a abandonei; e a terceira está periclitando... Os meus filhos já estão se divorciando... Eles foram os mais atingidos pelas minhas separações, e é isso o que mais me faz sofrer. Sinto-me um homem sem raízes, não sei mais qual é a minha família. Tenho saudades daquele lar que sonhei formar quando era jovem". O trecho retirado de uma carta que caiu em minhas mãos faz alguns anos revela a ponta de um iceberg. Ocultos debaixo da superfície de um aspecto descontraído e sorridente, há milhares de desavenças, rupturas e remorsos por causa de um cônjuge dolorosamente marcado e de uns filhos que sofrem, inseguros e decepcionados. Um secular ritual cigano prescreve que, ao se casarem, os noivos devem quebrar um vaso de barro com o intuito de conseguirem, juntos, recompor este vaso integralmente. Caso não consigam, o casamento deve ser irrevogável, ou seja, para sempre. Mas, nessa cerimônia, o costume prevê também que uma criança, sem ser vista, pegue um desses cacos e o jogue longe para que ninguém o possa encontrar.

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Fazer música é assumir um compromisso (comprometimento): compromisso com a obra, com o autor, com a platéia e consigo mesmo onde não há espaço para relações "abertas" (whatever it means). Fazer música é ato de responsabilidade: o artista responsável não se arrisca ao que não pode, ao que não está preparado, onde as conseqüências podem ser desastrosas. O artista é aquele que pensa na obra musical e em sua excelência, não em si mesmo: arte e exibicionismo não são a mesma coisa. A arte musical legítima cativa e encanta, assim como cativam as relações humanas verdadeiras: se a música é falsa, o público boceja. O verdadeiro artista não se embrenha em esforços para mostrar o quão bem sucedido é, da mesma forma que um pai de família realizado não se empenha em mostrar aos outros o quão saudável e bem constituída é sua família: os fatos falam por si. Um artista pode fazer sua arte abraçando seu instrumento: como pianista, confesso a inveja que tenho por esses outros instrumentistas que abraçam seus instrumentos durante a execução: violinistas, violistas, violoncelistas... Eu procuro me aproximar, também fisicamente, o máximo que posso do piano, que encaro como extensão de meus próprios braços. Não poderia ser de outra forma.

O vídeo abaixo, entre muitos outros, mostra a proximidade do músico Yo Yo Ma de seu instrumento (violoncelo), em exercício de unidade, em espetáculo portenho memorável.

Fazer música de verdade, em sua totalidade e entrega, sim, é um ato de amor.

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