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Música clássica decodificada

"Eu quero aplauso"

"A grandeza de uma profissão é, talvez, antes de tudo, unir os homens. Só há um luxo realmente verdadeiro: o das relações humanas". É assim que o clássico Terra dos Homens, de Saint Exupery, entende a grandeza de um trabalho profissional. Esse é o desafio: o do recurso humano. As empresas, mais do que qualidade técnica, buscam competência humana. Gente reta, sincera, pontual, verdadeira. Pessoas de uma peça só. A lei de Darwin - da seleção natural - aplica-se aqui, sendo essa a causa de muitas demissões. Se isso vale para todos os campos profissionais, não o seria diferente no campo artístico.

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Por Alvaro Siviero
Atualização:

O sucesso de um espetáculo é resultado de um trabalho coletivo. Um artista, sozinho, não produz a grandiosidade de um evento. Há muita gente envolvida. O trabalho escondido da produção geral, por exemplo, é o alicerce sobre o qual o edifício artístico se constrói. E o público é tão importante quanto o próprio artista, dado que concerto sem público não existe. É como um corpo humano, onde um braço não é mais importante que uma perna e onde uma pequena veia bloqueada coloca em perigo todo o organismo. No entanto, essa óbvia realidade pode caminhar na contramão do bom senso, oferecendo um grave perigo a artistas deslumbrados.

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Não nos passa pela cabeça aplaudir um advogado que finaliza, com competência, seu trabalho. Não aplaudimos o engenheiro que aponta para o edifício por ele projetado. Voos internacionais - pelo que tenho observado - também já não mais recebem o aplauso quando aterrissam (imaginem se os aviões ficassem magoados pela desconsideração?). No caso de um artista, envolvido em uma apresentação que emociona e remove a alma humana, é inevitável a reação incontida do aplauso, do grito. Do colocar-se de pé. O artista, pela gênese de sua profissão, acaba sendo um desses poucos profissionais que, fisicamente, presencia este momento. Mas é aqui que reside o perigo: o de entender que esta reação do público é uma reverência ao artista e não ao momento criado. Nada mais errático e infantil. Quando a arte se esbarra em artistas humanamente despreparados esquece-se uma verdade básica: a de que o verdadeiro artista é uma grande vidraça e que quanto mais limpo está e menos se vê, mais luz passa. O artista verdadeiro entende-se como instrumento.

Talvez, por este motivo, a inveja se encontre entre os vícios que mais interfere na atividade artística. A inveja - uma forma incompetente de admirar - é triste. O invejoso é infeliz. Essa infelicidade não é causada por um mal (um acidente, um fracasso, a perda de uma pessoa querida), mas por um bem, um bem alheio, e que é considerado como mal, simplesmente porque não o temos. É a moça feia que inveja a moça bonita. É o baixo que inveja o alto e, se não nos cuidamos, o perigo prolonga-se para muitas outras áreas de infelicidade geradas pelo que os outros tem - dinheiro, prestígio, cargos, casa, fazendas, viagens, carros - ou até por verificar (ou imaginar) que os outros são mais queridos: é o grande capítulo dos ciúmes. É o que traduz a lucidez do pensamento do Papa Francisco que circula nas redes sociais.

Sempre me disseram que um artista em ação revela quem é. Ao observarmos sua entrada no palco - de forma empinada ou repleto de simplicidade, com um olhar puro ou escondendo invejas disfarçadas - entendemos quem ele é. Uma fotografia. E as fotografias não mentem. Nelas o gordinho aparece gordinho e o narigudo aparece narigudo.

A solução para tudo isso é simples: basta estar apaixonado. Quando estamos apaixonados olhamos mais para o outro do que para nós mesmos. O artista verdadeiro, apaixonado pela música que fabrica, tem os olhos e a mente fixos e firmes em sua arte, não no próprio eu. E como sabiamente dizia Woody Allen, os mosquitos morrem entre aplausos. Fica a dica.

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