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Eduardo Coutinho e arte de encontrar o extraordinário no comum

Eduardo Coutinho foi um cineasta interessado nas histórias de vida. Como todo bom cineasta é. Mas ele tinha algo especial: com sua fala mansa, apesar da voz muito rouca e forte, sabia tirar o que de melhor havia nas pessoas que entrevistava. Como quem não quer nada, com uma boa conversa, encontrava o extraordinário no que há de mais comum e contou incríveis histórias vividas por anônimos. "Edifício Master", de 2002, resume um pouco essa maneira de se fazer cinema. Coutinho e sua equipe alugaram um apartamento em um prédio de Copacabana e, durante sete dias, filmaram a vida dos moradores. Com duzentos e setenta e seis apartamentos conjugados, o prédio abriga cerca de quinhentas pessoas. O filme conta brevemente a história de trinta e sete delas, e se concentra dentro desses pequenos apartamentos. O que existe de especial em cada um deles? À primeira vista, nada. Enquanto Coutinho entrevista um homem, uma mulher passa roupa ao fundo. Uma noite, mulheres levam bolo para uma vizinha que faz aniversário. Acompanhamos o trabalho da equipe de filmagem pelos corredores. Mas o extraordinário aparece quando Coutinho passa a entrevistar aqueles homens, mulheres, jovens ou velhos. Apesar de sua vida aparentemente banal, eles têm belas histórias para contar. Impossível não se emocionar com Henrique, por exemplo, um viúvo que, há mais de 60 anos, conheceu Frank Sinatra, que o convidou para cantar um trecho de "My Way", sua canção favorita, no restaurante onde estavam. Ele fala de sua vida solitária (seus três filhos ficaram nos Estados Unidos) e, de seu pequeno apartamento em Copacabana, canta de olhos fechados a música que para ele significa tanto. Essa bonita melancolia perpassa o filme de Coutinho. Ao final, imagens do prédio à noite. Em cada uma das janelas, os moradores cumprem tarefas banais. Quanta vida dentro daquele gigante de concreto.

Por Adriana Plut
Atualização:

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O emocionante depoimento de um dos personagens de "Edifício Master", Henrique, que conheceu Frank Sinatra

Em "Jogo de Cena" (2007), Coutinho passa a questionar seu próprio estilo. Ele colocou um anúncio no jornal, convidando mulheres a contarem suas vidas. Vinte e três delas foram selecionadas e, mais tarde, esses depoimentos foram interpretados livremente por atrizes (conhecidas do público, como Fernanda Torres e Marília Pêra, ou não) e, para completar, algumas delas também falam de sua vida real. O resultado final é um mosaico formado pelo relato dessas mulheres, mas o espectador não tem como saber quando a história está sendo contada pela pessoa que realmente a viveu. Neste jogo, o que importa é o caráter da representação. Aquele depoimento deixa de ser real a partir do momento que está sendo representado? Mas, afinal, aquelas mulheres que responderam ao anuncio também não estavam representando quando contaram suas próprias histórias? Não estamos nós, quase sempre, e ainda mais em frente a uma câmera, representando o que gostaríamos de ser? Para os curiosos, o DVD do filme traz os depoimentos que, mais tarde, foram interpretados para atrizes. Pode ser uma surpresa. Certamente você vai se admirar ao chegar a conclusão que aquela atriz te enganou direitinho. Faz parte do jogo.

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Em "Jogo de Cena" Coutinho coloca em jogo o caráter da representação

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Coutinho, por meio de seus personagens anônimos, retratou a história do País. Com "Peões" (2004), mostrou quem são os metalúrgicos que participaram do movimento grevista de 1979 e 1980 ao lado do então sindicalista Luís Inácio Lula da Silva. Sua obra prima, "Cabra Marcado Para Morrer" (1984), teve suas filmagens interrompidas pela ditadura e, décadas depois, Coutinho contou história do filme que não pôde fazer.

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Trailer de "Cabra Marcado Para Morrer", considerado a obra prima de Eduardo Coutinho

No ano passado, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo homenageou Coutinho pelos seus 80 anos e fez uma retrospectiva de sua obra. Além dos filmes, foram mostrados também dois trabalhos realizados pelo diretor para o programa Globo Repórter, onde foi editor de 1975 a 1984: Teodorico o Imperador do Sertão (1978) e Seis Dias em Ouricuri (1976). O programa contou ainda com encontros com o diretor e um novo livro sobre seu trabalho (com textos do próprio Coutinho e sobre ele). A Mostra também incluiu em sua programação uma obra de Coutinho que só pode ser exibida na presença do diretor, por questões de direitos autorais e de imagem. "Um Dia na Vida" não é um filme comum, e sim uma seleção de trechos que Coutinho retirou de programas da TV aberta. Ele gravou a programação por 24 horas e montou uma espécie de colagem de 90 minutos com momentos de telejornais, programas sensacionalistas, novelas e pregadores evangélicos que viu na TV naquele dia. Ao colocar essas situações na tela do cinema, Coutinho chama a nossa atenção para o absurdo de cada uma delas e escancara a realidade (e a falta de qualidade) da TV aberta brasileira. Mais uma vez, só que de outra forma, Coutinho encontrava o extraordinário no que há de mais comum. Abaixo, a filmografia do maior documentarista brasileiro:

1966: O Pacto (episódio do longa ABC do Amor) 1968: O Homem que Comprou o Mundo 1970: Faustão 1976: O Pistoleiro de Serra Talhada (média-metragem) 1976: Seis Dias em Ouricuri (média-metragem) 1978: Teodorico, o Imperador do Sertão (média-metragem) 1979: Exu, uma Tragédia Sangrenta (curta-metragem) 1980: Portinari, o Menino de Brodósqui (média-metragem) 1984: Cabra Marcado para Morrer 1987: Santa Marta - Duas semanas no morro (média-metragem) 1989: Volta Redonda, o Memorial da Greve (média-metragem) 1989: O Jogo da Dívida (média-metragem) 1991: O Fio da Memória 1992: A Lei e a Vida (média-metragem) 1993: Boca de Lixo (média-metragem) 1994: Os Romeiros de Padre Cícero (média-metragem) 1999: Santo Forte 2000: Babilônia 2000 2002: Edifício Master 2004: Peões 2005: O Fim e o Princípio 2007: Jogo de Cena 2009: Moscou 2011: As Canções

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