Um reencontro com o passado

[Publicado no Sabático de 4/12]

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Em Retorno 201, volume de textos escritos na juventude nos quais está a gênese de filmes como Amores Brutos, Guillermo Arriaga transforma em ficção a localidade em que viveu na adolescência

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Raquel Cozer - O Estado de S.Paulo

Há um pouco dos filmes Amores Brutos (2000) e 21 Gramas (2003) no livro de contos Retorno 201, de Guillermo Arriaga (Gryphus), que acaba de chegar às livrarias brasileiras. Não que trabalhar com o cinema tenha influenciado de alguma forma a obra literária do mexicano, autor do roteiro dos dois premiados longas. Pelo contrário. Guardadas na gaveta por mais de duas décadas, as histórias contidas no volume incluem a gênese de sua obra cinematográfica.

"Creio que elas incluem todo o mundo narrativo que veio depois, várias estruturas que usei no cinema. Quem viu Amores Brutos percebe facilmente de onde saiu aquele formato ao ler as histórias. No conto Em Paz, é possível reconhecer a estrutura de 21 Gramas. Os temas também são os mesmos. Desde cedo tenho as mesmas obsessões", afirma o autor, por telefone, ao Sabático.

O que ele chama de obsessões são as vivências da Cidade do México onde nasceu e ainda mora. Em Retorno 201, elas estão evidentes. O nome do livro é o mesmo do conjunto habitacional onde morou dos 8 aos 19 anos e que continuou a frequentar socialmente até os 25. Não era uma favela, como, segundo ele, costumam pensar. Bairro de classe média baixa, era perigoso só para quem se metia em perigo - caso, é claro, dele próprio, cuja perda de olfato aos 13 anos, de tanto apanhar na rua, é fato conhecido.

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Pois são de brigas, acidentes, mortes, dores e mentiras que tratam os contos. Se há um protagonista, é a localidade, onde convivem pessoas tão distintas como o ex-capitão de navio mercante que passa as noites aos berros, embriagado, e o respeitável médico acusado de realizar aborto que levou uma mulher à morte. "Parte das histórias é real, parte imaginação. Basicamente, a origem é real. Não posso, por exemplo, dizer que o médico existiu mesmo, senão daqui a pouco batem na minha porta com uma reclamação. Prefiro dizer que há muita criação ali", desconversa.

Autor de três romances, editados no Brasil - O Búfalo da Noite, em 2002, Um Doce Aroma da Morte, em 2007, e O Esquadrão Guilhotina, em 2008, todos também pela Gryphus -, Arriaga demorou a publicar os contos, quase todos escritos quando tinha entre 24 e 27 anos, devido a uma espécie de trauma. Sem crise com as experiências no bairro em que passou a primeira juventude, ele precisou superar a rejeição do primeiro editor ao qual tentou mostrá-los. "Ele disse que não eram bons, sem explicar por que. Não tinha lido nem queria se dar ao trabalho."

É claro que, depois de se tornar roteirista premiado, o caminho ficou mais fácil. E Arriaga, que sempre propagou o perfeccionismo de fazer e refazer incontáveis vezes os textos de romances e roteiros, tanto não tem restrições a esses contos que não sentiu necessidade de dar uma última mexida antes de publicá-los, em 2006, aos 48 anos. "Reescrevi só na época, duas ou três vezes cada um. Escrevia como louco naquele tempo. Tenho três volumes de contos prontos, mas este é o único que me encorajei a publicar. O resultado me satisfaz muito." Difícil foi pensar assim em relação ao último conto incluído no livro, O Rosto Apagado, que escreveu aos 35 anos. Essa história, acerca de um homem que perde a visão e tenta manter na memória a imagem da mulher, custou ao mexicano quatro meses de trabalho.

Estruturas. O notório gosto de Arriaga por histórias fragmentadas aparece cá e lá nos textos, intercalado por tramas lineares como a de A Viúva Diaz, história singela de um rapaz apaixonado por uma jovem casada e que - não intencionalmente, segundo o autor - remete a Mario Vargas Llosa, uma das declaradas admirações do mexicano na literatura. Entre as fragmentadas predominam as narrativas violentas, como Lilly, sobre adolescentes que descobrem poder abusar de uma menina doente mental, e O Invicto, que trata de uma disputa de liderança entre garotos da rua. "Creio que toda história tem uma forma distinta de ser contada. Mas o fato é que, na vida real, sempre que recordamos ou contamos um fato, o fazemos de forma fragmentada", diz Arriaga.

O estilo de texto não raro descrito como "cinematográfico" o autor credita a uma "tradição literária que usa o movimento para contar histórias" - na qual coloca nomes como Dostoievski, Stendhal e o conterrâneo Juan Rulfo, que "mostram reflexões traduzidas em ações". "Muitos escritores demonstram uma preocupação maior com a linguagem, criam romances que ela protagoniza. Para mim, o ideal é que o ser humano ou a própria vida o faça."

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Enquanto projetos anteriores de livros tiveram de ser abortados ao se tornarem roteiros - caso de Amores Brutos e 21 Gramas -, Retorno 201 segue outro caminho. Um único conto, Rogélio, foi a base de um curta dirigido por Arriaga (e que pode ser visto em bit.ly/rogelio), mas ele não quer "desperdiçar" o restante das histórias aos poucos. Sua intenção é, em breve, filmar um longa que aborde a série de narrativas.

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