Retrato de cada um de nós

Eu sei, eu sei, ando em falta com a promessa de publicar aqui textos além dos que saíram no jornal. Ninguém fez ainda a cobrança, mas imagino que ela estará lá a cada vez que recebo aviso de comentário novo.

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Por Redação
Atualização:

É que os dias não têm dado chance. Na terça, chegando de viagem, leio no e-mail o horário marcado para a entrevista pedida com Ian McEwan. Poderia ser ontem, às 10h, ou em nenhum outro horário. Dadas as opções, é claro que foi, e daí saí cedo da redação e inventei tempo pra ler a prova de Solar enviada pela Companhia das Letras.

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Solar é um bom livro, embora eu ainda seja mais fã do McEwan de Reparação e Na Praia (não consigo entender quem não acha Na Praia, esse livro que me deu insônia, uma obra prima).  McEwan é uma delícia de entrevistado, e eu queria ter tido tempo de preparar melhor as perguntas. E muita coisa do que falamos acabou ficando de fora da versão da entrevista que saiu no Caderno 2 hoje, por questão de espaço.

Reproduzo a reportagem publicada no jornal abaixo, mas, antes, um trechinho da conversa que ficou de fora. É que, a certa altura de Solar, o protagonista, Michael Beard, aparece na juventude num empenho acadêmico de conquistar uma estudante de literatura. Aluno da física, ele mergulha em teses sobre John Milton e aprende o suficiente para impressionar a moça.

McEwan escreve: "A conquista de Maisie foi uma perseguição implacável e muito bem organizada, que lhe deu imensa satisfação e provou ser um momento crucial no seu desenvolvimento, pois ele sabia que nenhum terceiranista de arte, por mais brilhante que fosse, seria capaz de se fazer passar por entendido, após uma semana de estudo, entre seus colegas matemáticos e físicos. Era uma rua de mão única. Sua semana miltoniana o fez suspeitar de que existia um blefe monstruoso. A leitura foi árdua, mas ele não havia encontrado nada que pudesse remotamente ser considerado um desafio intelectual, nada na escala de dificuldade que enfrentava todos dias em seus cursos. (...) Beard suspeitava não haver nada que eles discutissem que não pudesse ser compreendido por qualquer pessoa de inteligência modesta."

Como o próprio McEwan conta que ficou na dúvida entre cursar literatura e física quando estava na adolescência, perguntei a ele se a opinião de Beard era também a dele. Atente para as duas frases finais da resposta.

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No livro, Beard conclui, durante a juventude, que a mais complexa teoria literária é mais simples de se compreender do que a física, que literatura exige menos inteligência. Isso é algo em que você acredita?

Se você está na universidade, estudando literatura, você nunca terá nada tão difícil para entender como a teoria geral de Einstein. Não há nada complexo assim na literatura. Todos podemos entendê-la, mas nem todos podemos fazer matemática no nível que a física exige. Pode ser um trabalho duro, mas não será difícil em termos de compreensão. Não sei como é no Brasil, mas, na Inglaterra, alunos de literatura tendem a olhar de cima para baixo aqueles que estudam matemática ou física. Isso me parece muito estranho.

Segue abaixo o texto e os trechos da entrevista que saíram hoje no Caderno 2.

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 Foto: Estadão

O retrato exagerado de cada um de nós

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Raquel Cozer - O Estado de S.Paulo

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

De todas as honrarias que o britânico Ian McEwan recebeu ao longo da vida, a mais inesperada veio no ano passado. Pelo romance Solar, que chega às livrarias brasileiras no próximo dia 6, o escritor de 62 anos levou o prêmio de ficção cômica Bollinger Everyman Wodehouse - o que lhe garantiu como troféus uma caixa de champanhe e um porco, devidamente batizado de Solar. "O porco eu tive que devolver depois", conta McEwan ao Estado, por telefone, "mas é sempre bom ganhar um prêmio".

Conhecido por sua literatura séria - incluindo o romance Amsterdã, que lhe valeu o Booker Prize em 1998 -, o autor de Sábado e Reparação causou surpresa ao escrever uma obra sobre tema atual e relevante, o aquecimento global, mas na qual o humor é central. Na trama, um cientista cinquentão, Michael Beard, não faz nada além de colher os louros de um Prêmio Nobel recebido décadas antes, até que lhe cai em mãos (e ele assume como próprio) o projeto de outro físico de aproveitar a energia solar por meio de fotossíntese artificial.

McEwan, atração da Flip de 2004, diz que deve voltar ao Brasil em dezembro por conta do lançamento de Solar, sobre o qual fala na entrevista a seguir.

A ideia de escrever um romance sobre o aquecimento global surgiu quando isso virou tema prioritário no debate mundial?

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Tinha uma ideia anterior, desde os anos 90, e fiquei bastante feliz e surpreso quando o assunto chegou ao centro da agenda política, por volta de 2004, 2005. Antes, pensava na possibilidade, mas não conseguia imaginar como entrar no assunto. É um tema complicado. Há muita ciência, estatística, envolve uma questão moral que podia ser difícil para um romance. Demorei a encontrar o caminho.

Que tipo de dúvidas tinha?

Antes de tudo, uma obra sobre questões climáticas carrega o peso moral de tentar persuadir as pessoas. Isso pode ser prejudicial a um romance, tirar a vida dele. Uma ficção temática, que defenda uma campanha... Isso eu queria evitar. Em segundo lugar, seria necessário abordar informações científicas num nível em que as pessoas podiam não achar interessante. O tema, por si só, resiste à ficcionalização.

Foi por isso que optou pelo uso de elementos cômicos?

Achei que poderia atrair o leitor pelo humor. Decidi que o melhor caminho para entrar nisso seria criando um personagem como Michael Beard, que é uma espécie de todo homem. Ele consome muito, come muito, é insaciável, causa o caos ao redor. É uma espécie de retrato exagerado de cada um de nós.

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Quando surgiram os primeiros comentários na imprensa sobre Solar, você negou que fosse um romance cômico, não foi?

Na verdade, eu me referia um tipo específico de romance cômico inglês em que praticamente toda linha tem que ser engraçada, com piadas intermináveis a cada página, como se alguém estivesse fazendo cócegas em você contra a sua vontade. Minha ideia de romance engraçado seria um com passagens sérias e cômicas, que é o que faço aqui.

Mas o humor, apesar de tirar o peso moral, não resolve a questão de como abordar definições científicas na literatura.

É preciso ter cuidado, porque a maior parte das pessoas não quer saber dos detalhes. É perfeitamente possível ler o romance sem acompanhar de perto os fatos científicos. No começo, escrevi que o personagem Michael Beard ganhou o Nobel por fazer alterações no trabalho de Einstein. Não tinha ideia do que queria dizer com aquilo. Ao terminar, enviei a um amigo, físico, para que inventasse um trabalho que poderia levar o Nobel. Sou como a maior parte dos leitores, não espero que ninguém saiba física quântica.

Há um trecho no romance baseado numa situação que você viveu, a viagem ao Ártico na qual os convidados fazem enorme bagunça com o equipamento para andar de skidoo (moto de neve). Por que incluiu isso na história?

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Fiz essa viagem com um grupo de artistas em 2005 e foi um momento muito importante para a concepção do livro, porque me fez perceber a possibilidade da abordagem cômica. Aquelas pessoas estavam lá para refletir sobre problemas do planeta, mas não conseguiam resolver nem os próprios problemas.

O personagem Beard tem essa característica, também. Ao longo da vida vai se deteriorando, engordando, perdendo a ambição.

O corpo dele é como que o estado da Terra. Ele não trata o corpo bem, mas toma decisões, assim como de tempos em tempos vemos grandes conferências com resoluções fortes sobre o que fazer. Desde aquela que houve no Rio, no início dos anos 90 (Rio 92), nós não salvamos as florestas, não limpamos os mares. Temos sucesso limitado em alguns países na limpeza de rios, mas, no geral, não paramos de fazer o que fazemos. Somos todos meio Michael Beard nesse aspecto. Ele quer perder peso, fazer exercícios, mas o tempo passa e nada muda, porque vai contra a natureza dele.

Isso significa que você não tem esperanças?

No momento, as coisas não andam bem. Na comunidade internacional que lida com isso, as pessoas estão descrentes. Há alguns anos houve esperança, mas, no momento, a visão é de que o problema existe, mas o público está cansado de ouvir falar nele, os políticos perderam o empenho. Obama não foi capaz de levar adiante questões que abordou na campanha, a recessão mundial tirou a questão climática da lista de prioridades. Por outro lado, muitas coisas acontecem fora do âmbito governamental, há pesquisas desenvolvidas por empresas privadas e universidades. Temos de nos mover e não temos tempo. É preciso que uma nova Revolução Industrial aconteça nos próximos 25 anos. Não sou totalmente desesperançoso. O que o livro diz é que podemos ser muito espertos, como Michael Beard, mas somos muito estúpidos, como Michael Beard.

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Acha que seu romance pode fazer as pessoas pensarem a sério sobre questões climáticas?

Pode ajudar a refletir, não a solucionar. Pode nos mostrar como somos. Meu interesse é na natureza humana, homens lidando com questões que vão contra a sua natureza. Buscar soluções para o aquecimento global nos obriga a pensar a longo prazo, a fazer favores a pessoas que nunca vamos conhecer, a cooperar com outras pessoas ao redor do mundo. Isso exige altruísmo, o que vai contra nossa natureza. O que o romance pode fazer é ajudar a refletir sobre a complexidade da natureza humana.

A certa altura, Beard se vê envolvido num escândalo após fazer comentários sobre os cérebros masculino e feminino. Você viveu isso algumas vezes, não?

Sim, sempre quis escrever sobre como é estar no meio de um escândalo da imprensa britânica. Estive em algumas, assim como muitos de meus amigos. É uma experiência estranha. É como se um furacão entrasse na sua casa. E então, de repente, você acorda e ele se foi. De repente, todos os jornais perderam o interesse. Você se sente como se tivesse sido deixado para trás, como se a festa tivesse acabado e todos tivessem ido embora.

TRECHO

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"Ele pertencia àquele gênero de homens - vagamente feiosos, quase sempre carecas, baixos, gordos e inteligentes - que exerce... ...uma atração inexplicável sobre certas mulheres bonitas. Ou achava que pertencia, o que parecia ser suficiente para transformar o desejo em realidade. No que era ajudado pelo fato de algumas mulheres o tomarem por um gênio que precisava ser salvo. Entretanto, naquela altura da vida Michael Beard era um homem de funções mentais limitadas, desprovido de impulsos hedônicos, monotemático, ferido. Seu quinto casamento..."

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