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Febre na selva

Posso explicar os dias ausente. Não há Silêncio Que Não Termine, o livro de Ingrid Betancourt sobre os seis anos e meio em que foi refém das Farc, me caiu nas mãos no sábado de manhã para leitura até ontem cedo - quando transcrevi no Caderno 2 trechos da conversa que tive com ela na segunda à tarde. O volume tem 550 páginas, e confesso que não morri de amores quando soube que teria de atravessar meu final de semana mergulhada num calhamaço assinado por ela.

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Por Redação
Atualização:

Para começar, porque histórias envolvendo o nome da Betancourt pós-libertação nunca foram das mais animadoras. Lembrava dos comentários sobre ela ter se colocado em situação de risco consciente disso; das críticas de companheiros de cativeiro (em Out of Captivity, ela é descrita como egoísta e manipuladora); do imbróglio no pedido de indenização que ela fez ao governo colombiano. E também porque a história foi tão repisada (Clara Rojas, assistente que foi sequestrada com Betancourt, foi a primeira a lançar livro a respeito) que começar a ler 550 páginas sobre o tema...

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Mas li. E a boa notícia veio já no primeiro capítulo, em que Betancourt descreve sua quarta tentativa de fuga do acampamento dos guerrilheiros, ainda em 2002, primeiro ano do sequestro. A descrição da preparação para a fuga (para acostumar o organismo aos dias em que ficaria na selva sem água limpa, ela se forçou a beber água barrenta ainda no cativeiro); dos detalhes da rotina do acampamento escondido no meio da Floresta Amazônica; da espera pelo lusco-fusco (horário em que "durante alguns minutos, quando os olhos começavam a se adaptar à escuridão, e antes que a noite caísse de vez, todos nós ficávamos cegos")...  As situações são construídas de maneira tão visual que você não sente as páginas passarem.

Goste-se ou não da Betancourt, é uma leitura interessante. Tenho ressalvas, em especial, à quantidade de críticas que ela faz a Clara Rojas (foi muito falada por aí a parte em que conta que Clara pediu autorização às Farc para engravidar, o que seria colocar a vida de uma criança propositalmente em risco) e ao número de vezes em que, segundo Betancourt, ela própria resolveu sozinha situações difíceis.

De qualquer modo, durante a conversa por telefone, com aquela vozinha tããão delicada que parece que ela vai desmontar se levar um tropeção, quanto mais ficando de refém na floresta, ela disse algo contra o que ninguém do lado de cá da situação pode argumentar: "É fácil dizer 'ah, que horrível' quando você está à sua mesa, comendo o que quer, falando com quem quer e indo para a cama na hora em que bem entende".

Seguem abaixo trechos da conversa, publicados hoje no Caderno 2.

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Seu livro é muito detalhado nas descrições de situações e diálogos. Escrevê-lo era algo que já passava pela sua cabeça enquanto vivia aquelas situações?

Na floresta, eu sabia que uma coisa que gostaria de fazer após a libertação seria testemunhar o que vivi. Essa ideia me ajudava a ir em frente. Mas, até em fevereiro de 2009, estava apenas vivendo a emoção e a felicidade de estar livre, aproveitando a relação com minha família. Quando senti que voltava a uma rotina normal, sentei em frente a uma escrivaninha para começar. Então fiz uma lista de coisas sobre as quais gostaria de falar. Momentos dos quais me lembrava e não queria esquecer. O fato é que não é um livro cronológico, você começa a ler de uma das minhas tentativas de fuga até minha libertação. E também não quis colocar tudo lá, quis escrever sobre vivências que representaram algo na transformação que experimentei ao longo de tudo aquilo. Houve situações sobre as quais preferi não escrever.

Que tipo de situações?

Uma vez que me lembrava de algo, ponderava se contar aquilo seria decente, no sentido de que há situações que não são bonitas para se trazer à tona, porque não trazem nada que possa enriquecer alguém. Acredito que às vezes, mesmo na dor, há coisas bonitas. E era isso o que queria dividir. Não queria abordar coisas horríveis que não tiveram sentido e que só magoariam as pessoas ao meu redor. Entende? Não queria registrar histórias apenas sujas, que foram pura loucura ou crueldade.

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Em vários trechos do livro, você demonstra até carinho por alguns dos guerrilheiros.

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Sim. Acho que esse é um livro de amor no sentido fraterno, que é aquele que não espera resposta. É sobre como você pode amar nas situações mais extremas. Vivi isso tudo com a sorte de ter por perto alguns seres humanos incríveis, que me trouxeram nova dimensão para palavras como solidariedade, dignidade, compaixão.

E é curioso porque, ao mesmo tempo, você escreve sobre como odiou aquelas pessoas.

Quando vive uma situação extrema, você tem sentimentos extremos. Então se dá conta de que, por que são extremos, não significa que não possam mudar. Uma das coisas que aprendi foi que você pode odiar alguém por quem tem bons sentimentos. É claro que odiei meus sequestradores, porque eram horríveis, mas, hoje, quando vejo o que aconteceu, sinto compaixão. Entendo o que é a condição humana e como somos levados por coisas que nos controlam, por pressão do grupo, ordens ou pelo fato de odiar outra pessoa não por achá-la horrível, mas porque você precisa disso para se sentir melhor.

Você chegou a se odiar ou ter vergonha de suas atitudes?

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Não. (Pausa) Uma coisa que sempre esteve na minha mente, ainda no cativeiro, era que não queria olhar para trás e ter vergonha do que vivi ou fiz. Queria ser capaz de sair da floresta, me olhar no espelho e estar em paz. É claro que tive reações que não foram as melhores. Mas, por toda a jornada que fiz, posso estar em paz comigo.

Você critica atitudes de Clara Rojas e dos prisioneiros americanos... Que, aliás, também criticam as suas nos livros deles.

Sabe o que penso? Penso que somos pessoas feridas. Fomos forçados a viver num espaço restrito, recebendo todo tipo de mensagem para nos afastar, porque as Farc sabiam que, unidos, podíamos tentar fugir ou nos rebelar. Eles vêm fazendo isso há anos, sequestraram milhares de pessoas, sabem como agir. Meu livro é sobre o que vi, o que vivi, como me senti, não é sobre o bem e o mal. Todos éramos bons e maus. Tenho respeito por meus companheiros. Não quero sentir que tenha apontado o dedo a alguém, porque isso eu tentei evitar. Escrevi o que escrevi porque penso que cada um deveria refletir sobre como se comportaria se fosse obrigado a viver o que vivemos. É fácil dizer "ah, que horrível" quando você está à sua mesa, comendo o que quer, falando com quem quer e indo para a cama na hora em que bem entende. E então você vai para a internet dizer todo tipo de coisa estúpida.

Você descreve no livro a origem camponesa das Farc, nos anos 60, e como eram diferentes do que são hoje. É possível apontar um culpado nesse caso?

É simples. As Farc são culpadas do sequestro. Houve todo tipo de especulação sobre quem foi responsável pelo meu sequestro. Os responsáveis foram as Farc, ponto. Agora, como organização, eles fizeram muito mal para a Colômbia. Não responderam de maneira apropriada aos problemas que temos, tornaram-se piores que a sociedade, mais corruptos, mais violentos, mais injustos. Eles ofereceram uma maneira melhor de viver, uma solução para as injustiças sociais. Mas o que vi na floresta foi o contrário. Há uma hierarquia na qual quem está no topo tem uma vida melhor que a de quem está na base. Tem privilégios, dinheiro e abusa do poder.

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Como você se sente em relação às reações na Colômbia ao seu pedido de indenização do Estado (Ingrid recuou do pedido de indenização de R$ 14 milhões após receber duras críticas do governo, da imprensa e da opinião pública)?

Eu me sinto muito magoada. É uma ferida profunda. Qualquer vítima de terrorismo tem direito a compensação, não só para ajudar a fechar as feridas como para mostrar o que aconteceu. Como vítimas, temos de ter esse suporte. Se o Estado não pode nos proteger contra o terrorismo, deveria nos ajudar depois. Foi manipulação política. O governo disse que, ao pedir indenização, eu atacava os soldados que me libertaram. Não sei como fizeram essa relação e como as pessoas engoliram isso. Eles mostraram em números quantos salários poderiam ser pagos, dizendo "olha como ela é horrível". Eu nunca teria aceito viver o que vivi por aquele dinheiro, nem pelo dobro. Nada vai compensar os seis anos e meio longe dos filhos, o momento em que não pude estar com meu pai quando ele morreu, os anos que acabaram com meu casamento, o sofrimento da minha mãe. Nada vai me compensar isso.

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