Era da desconfiança

Saiu no Sabático de ontem meu texto sobre Os Excluídos, da sino-americana Yiyun Li - uma dos 20 autores com menos de 40 que merecem atenção, segundo lista recente da New Yorker. O romance acaba de sair no Brasil pela Nova Fronteira.

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Por Redação
Atualização:

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Vidas às margens de uma história

Raquel Cozer - O Estado de S.Paulo

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Yiyun Li passou a infância orientada a nunca confiar em ninguém fora de casa. A recomendação, comum a crianças em qualquer lugar do mundo, era algo mais complexa na China do final dos anos 70. Com a morte do líder comunista Mao Tsé-tung (1893-1976), o país viveu uma breve fase de liberalização política, a Primavera de Pequim, para em seguida entrar num período nebuloso que culminaria com o massacre de estudantes na Praça da Paz Celestial, em 1989.

Li, hoje com 37 anos, deixou a capital chinesa em 1996 para estudar nos Estados Unidos, mas os reflexos daqueles tempos - prova de que não era simples o que seus pais lhe pediam - permaneceram. "Só entendi totalmente depois que saí do país e me tornei escritora", diz, por e-mail, ao Estado, a autora que acaba de ter publicado por aqui seu primeiro romance, Os Excluídos (2009), cuja trama se inscreve no ambiente de desconfiança e medo em que vivia a população de um vilarejo fictício em 1979. A história se desenvolve em torno da condenação à morte da personagem Gu Shan, de 28 anos, por ideias anticomunistas. Em 21 de março, quando começa o romance, os moradores são convocados à cerimônia pública na qual ela será exposta, ao som de hinos, antes da execução.

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Poucos deles saberão que, antes de morrer, a jovem teve seus rins retirados para um transplante não autorizado e as cordas vocais cortadas para não se manifestar na cerimônia. Enquanto esses fatos se fazem revelar, a autora apresenta personagens como Tong, menino de 7 anos que aprende a delatar em troca de segurança; Nini, garota deficiente de 12 anos tratada como escrava na casa dos pais; Bashi, o idiota da vila, que desenterra o corpo de Shan e descobre que o cadáver foi violado; sr. e sra. Hua, casal de catadores que criou sete meninas abandonadas no lixo até elas lhe serem tiradas pelo governo. Logo o leitor se dará conta de que há muito pouco de inocência nessa história ? aos 14 anos, antes de se voltar contra o comunismo, Shan, então integrante da Guarda Vermelha de Mao, chutou durante um confronto a barriga da mãe grávida de Nini, causando a deformidade da menina.

O tom realista e duro da narrativa de Yiyun Li já tinha chamado a atenção da crítica internacional em sua estreia como escritora, em 2005, com o livro A Thousand Years of Good Prayers - na época, foi eleita pela revista literária Granta uma das melhores jovens autoras dos EUA. O volume recebeu prêmios como o PEN/Hemingway Award e o Guardian First Book Award, e dois de seus contos foram adaptados para o cinema por Wayne Wang em 2007, Mil Anos de Orações e A Princesa de Nebraska. Há poucos dias, Li foi listada pela prestigiosa revista New Yorker entre os 20 escritores de menos de 40 anos que merecem atenção - uma seleção que, em outros tempos, incluiu nomes como Martin Amis e Ian McEwan. Uma trajetória peculiar para uma jovem que, quando chegou aos EUA, com 24 anos, pretendia apenas se tornar imunologista - chegou a fazer o curso em Iowa, mas abandonou a especialização. Casada e mãe de dois filhos, ela hoje mora em Oakland, na Califórnia. Veja a seguir os principais trechos da entrevista.

Ao longo do romance, vários personagens tomam atitudes questionáveis para receber em troca algum benefício, como o rapaz que entrega as cartas da namorada às autoridades para conquistar um posto no Exército. Traições como essas, ou até crimes, eram comuns na China pós-Revolução Cultural?

Em momentos de turbulência política como os retratados no romance, ou mesmo como os 30 anos anteriores aos acontecimentos ali narrados, é comum as pessoas entrarem em pânico no que diz respeito à própria segurança. E, quando isso acontece, tendem a trair umas às outras sem pensar que poderiam fortalecer a própria sobrevivência se juntassem forças aos vizinhos ou amigos. Naquele momento, na China, muitas pessoas acreditavam que, quanto mais gente ao redor fosse derrubada, menor seria a punição que caberia a elas próprias. Com certeza não era a única maneira de reagir ao que acontecia ali, mas talvez tenha acontecido com mais frequência do que deveria acontecer. Não era algo inaceitável pela lógica daquele momento.

E como era confiar em alguém num ambiente como aquele? É possível dizer que as experiências daquele período ajudaram a definir as características da atual sociedade chinesa?

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As pessoas, de fato, desconfiavam muito umas das outras naquele ambiente. A orientação que eu mesma recebia em casa era a de nunca confiar em ninguém que fosse de fora. Pensando como algo coletivo, é possível dizer que a sociedade tenha sido, de uma maneira ou de outra, moldada em parte pela desconfiança e por outros resultados emocionais de experiências políticas como aquela.

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Você cresceu em Pequim, enquanto os acontecimentos do romance se passam em um vilarejo muito pequeno, fictício. E, no entanto, há ali um realismo social muito forte. A situação era similar nesses dois cenários? Como você, que tinha 7 anos naquela época, percebia a realidade desses "excluídos"?

No final dos anos 70, Pequim era muito parecida com uma pequena cidade de província. O realismo social a respeito do qual você fala é uma reprodução da minha vida e da minha geração crescendo. O que fiz foi apenas descrever vidas que me eram muito familiares. Agora, de fato, uma coisa que eu não conseguia entender direito era a realidade dos excluídos. Mas, como criança, quando você está confuso (e quando ninguém dá explicações nem ajuda a entender o mundo), você absorve os detalhes da realidade como uma esponja. Comecei a compreender tudo aquilo quando entrei na adolescência. Agora, entender totalmente... Isso só aconteceu depois que deixei o país e me tornei escritora.

O New York Times descreveu seu romance como "nada fácil ou agradável de ler". Você concorda? Foi trabalhoso escrever uma história assim?

Não achei difícil escrever o romance, mas, na revisão, me dei conta de como a história é dura. Ainda assim, diria que "agradável" não é uma qualidade que eu me empenhe em alcançar. Minha resenha favorita foi a de um jornal local, que disse que o meu livro "não foi feito para os covardes". Quando li isso, gargalhei.

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Você foi para os Estados Unidos em 1996 para estudar imunologia e lançou o primeiro livro quase dez anos depois. Como aconteceu essa passagem da ciência para a literatura?

Comecei escrevendo um pouco quando ainda estudava imunologia, mas em 2000 desisti do curso. Trabalhei por algum tempo em um hospital e entrei num curso de escrita criativa em Iowa, e foi então que comecei a levar a sério a escrita. Acho que me ocorreu que nunca amei a ciência como amo a literatura. Queria ser escritora e fazer algo que eu amasse.

E é fácil para você escrever em inglês?

Nunca é fácil escrever, em idioma nenhum. Mas, pelo que posso avaliar, não é mais difícil para mim escrever em inglês do que qualquer outro nativo. Acho até mais fácil escrever em inglês do que em chinês. Aliás, para mim, a ideia de escrever um livro em chinês é praticamente impossível.

Escritores mais jovens são quase sempre comparados a outros como forma de referência. Lembro-me de ter lido uma frase em que você era comparada ao mesmo tempo com Saramago e Coetzee. Com quem de fato se identifica?

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Ah, todas as comparações são bem-vindas para mim, porque sei que não sou tão boa quanto ninguém com quem sou comparada. Minha preferida é Tolstoi, Chekhov e George Orwell em uma única resenha. Foi uma grande honra, mas não quero ser comparada a Orwell, e sei que nunca seria tão boa quanto Tolstoi e Chekhov! William Trevor, o contista e romancista irlandês, é provavelmente a maior influência literária na minha carreira.

Por falar em idade, ficou surpresa em ver o seu nome entre os 20 autores com menos de 40 anos que merecem atenção, segundo a revista New Yorker?

O que me surpreendeu foi ser chamada de jovem! Eu não sou mais tão jovem assim, mas é reconfortante saber que escolhi uma profissão na qual a juventude dura um pouco mais do que na maior parte das outras profissões.

O que achou de ver os seus contos transformados em filmes por Wayne Wang?

Quando ele me falou que queria transformar meus contos em filme, disse a ele que seria impossível, porque minhas histórias são muito internas e muito silenciosas para o cinema. Fiquei feliz quando ele me provou que eu estava errada.

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E há alguma chance de vermos Os Excluídos no cinema?

Não acho que o romance tenha chance de ser transformado em filme, pela óbvia razão de que é muito político e sombrio, e as autoridades na China não permitiriam que as filmagens fossem realizadas no país. Diferentemente dos contos que Wang adaptou, a história de Os Excluídos teria de ser filmada na China.

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