Entre fatos e invenções

[publicado no Sabático de 27/11]

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Por Redação
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Em seu primeiro romance, Marcelo Ferroni parte de diários, relatórios e depoimentos sobre a missão de Che Guevara na Bolívia para, numa proposta de desconstrução literária, arrancá-los do contexto

Raquel Cozer, raquel.cozer@grupoestado.com.br - O Estado de S.Paulo

Estrábico e semianalfabeto, o jovem Benigno, homem de confiança de Che Guevara, deixou longo relato do período em que os guerrilheiros incumbidos de dar início à revolução na Bolívia, em 1966, encaminhavam-se de La Paz para o acampamento na selva. A falta de intimidade com as letras não impediu o uso de descrições elaboradas sobre a paisagem, que teria "paredes cobertas até o alto de espessa floresta, com tremendos contrafortes erguendo-se a pique e com ladeiras de puro granito".

Quem nos revela esses detalhes é o narrador do recém-publicado Método Prático da Guerrilha, não sem antes esclarecer que os diários de Benigno recendem a plágio e não costumam ser usados por biógrafos como fonte confiável de informação. Acontece que esse narrador, um leitor mais atento poderá perceber, usa de expedientes questionáveis. Por má fé, desatenção ou provocação, incluiu nos relatos de Benigno trechos de anotações feitas por exploradores ingleses no Brasil do século 19.

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É nessa descontextualização da história que reside a graça de Método Prático da Guerrilha - na realidade, não uma biografia nem uma reportagem, como possa parecer à primeira vista, mas sim um romance, o primeiro de Marcelo Ferroni, de 36 anos, editor da Alfaguara. Como alertam frases anteriores à epígrafe, o "livro se baseia em diários, relatórios e depoimentos dos que foram à luta armada. Tirá-los do contexto foi trabalho do escritor". Um trabalho que demandou, aliás, mais tempo e esforço que a pesquisa. Dos sete anos desde a ideia original de escrever sobre Che, apenas um foi dedicado exclusivamente a leituras. Os três anos seguintes se dividiram entre pesquisa e escrita, e os três finais, a reescrever - quatro vezes - o romance do início ao fim.

A gênese da história imaginada por Ferroni está num caso relatado pelo jornalista Elio Gaspari em seu primeiro volume da série sobre o regime militar, A Ditadura Envergonhada (2002). Ali, o paulistano tomou conhecimento de que, durante o período que Che Guevara passou no Congo, em 1965, na tentativa de liderar um movimento de guerrilha, o argentino demonstrava intenso desconhecimento da realidade local. "Ele achava que ia colocar ordem nas tribos com seus guerrilheiros, mas não conhecia nada de geopolítica", conta Ferroni. Entre os desmandos da empreitada fracassada, Che tentou convencer congoleses a carregarem 40 kg de pedras em mochilas para se acostumarem, ao que eles retrucavam que não eram caminhão.

"Lendo sobre aquele choque entre duas realidades, percebi que precisava escrever sobre o Che, esse herói que virou mito ao morrer jovem defendendo um ideal, um combatente destemido enfrentando uma realidade que não entende bem", afirma. O que seria a princípio uma biografia romanceada ou um romance histórico acabou virando a desconstrução disso, com o narrador onisciente em terceira pessoa se transformando nesse contador pouco confiável da história. Aqui, a inspiração veio de outro livro, Che Guevara: A Biography, de Daniel James, uma das primeiras biografias do argentino, dos anos 70, quando muito pouco ainda havia sido revelado sobre a guerrilha - uma descrição cheia de lacunas, segundo Ferroni, que percebeu um leve desprezo do autor pela figura do revolucionário. Assim como James, o narrador do romance é pedante, até irritadiço.

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 Foto: Estadão

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Referências. Definido o formato da narrativa, o escritor passou a incluir referências históricas e literárias sempre onde elas não deveriam estar. Relatos de guerrilheiros estão lá aos montes, mas na maior parte das vezes na boca de outro que não aquele que os registrou. Num momento em que os cubanos tentam atravessar um rio a nado na Bolívia, a descrição aparece tal e qual a de cena similar no clássico Guerra e Paz, de Tolstoi. Na dúvida, o paulistano preferiu nem conhecer pessoalmente o cenário dos acontecimentos. "Não fui (para a Bolívia), e foi de propósito. Não fiz entrevistas, não visitei lugar nenhum. Com isso, a Bolívia se tornou meu país imaginado, como uma peça em que o fundo é um tecido pintado com a perspectiva levemente errado", explica. "O cenário é literatura, as referências são de literatura, os personagens são recriados por eles mesmos nos diários."

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A saga recontada no romance resume-se aos dois últimos anos de vida de Che (1928-1967). Começa com os primeiros contatos, em La Paz, em 1966, entre agentes que formarão a rede urbana da missão na Bolívia, país escolhido como ponto de partida da revolução na América do Sul. Entre eles está Tania, argentina descendente de alemães infiltrada nos altos círculos da sociedade pacenha. Como a grande maioria dos personagens de Método Prático da Guerrilha, Tania existiu de fato. Era o codinome de Haydée Tamara Bunke Bider (1937- 1967), única mulher participante da ação boliviana e que, segundo biógrafos, teria sido amante do comandante Guevara.

Outra ponta da narrativa inclui a maior liberdade histórica de Marcelo Ferroni. Trata-se de João Batista, codinome de Paul Neumann, brasileiro de Caxias do Sul que, por percursos não muito claros, foi parar na selva boliviana ao lado de Che. No prefácio, o narrador apresenta esse como o grande diferencial de sua versão dos fatos - ele, e apenas ele, teve acesso a uma tal transcrição de interrogatório realizado por dois cubanos a serviço da CIA com Paul Neumann, em 1697, depois da morte do líder, e que permanecia intocada no Departamento de Estado dos EUA. O personagem, inventado por Ferroni, é uma espécie de Fabrício Del Dongo no romance A Cartuxa de Parma, de Stendhal: participa de uma guerra napoleônica sem ter a menor ideia do que está acontecendo.

Thriller. Jornalista por formação, há quatro anos vivendo no Rio - desde que assumiu o cargo de editor no selo mais literário da Objetiva -, Marcelo Ferroni buscou construir em Método Prático da Guerrilha uma espécie de thriller que é, ao mesmo tempo, uma provocação com os thrillers de base histórica. "Uma vez, um conhecido me disse que só lê ficção se for algo como O Código Da Vinci, que enquanto você lê aprende coisas sobre a Igreja. Daí pensei: "Mas tudo o que está lá é ficcional." Meu livro é, de certa maneira, uma resposta a isso. Quem lê esperando encontrar a verdade não vai encontrá-la."

O que o leitor encontrará será uma visão bem-humorada dos erros reais de planejamento que, naquele ano de 1967, ajudariam a levar à morte de Che Guevara, numa emboscada na selva. Toda a ironia, no entanto, não tira para Ferroni o papel heroico que desempenhou o argentino no século passado. "Um herói um pouco mais humano, muito autoritário, muitas vezes equivocado, mas ainda assim um herói."

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