E a casa vai virar museu...

Eu tinha uns 19 anos a primeira vez que ouvi falar em Stefan Zweig. Embora já morasse havia dois anos no Rio, por causa da faculdade, voltava para Petrópolis todo final de semana, onde viviam meus pais e meus melhores amigos. Numa dessas comecei a namorar um ex-colega de colégio, que tinha entrado fazia pouco na faculdade de medicina e não era nada aficcionado por temas literários.

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Por Redação
Atualização:

Algumas semanas depois de começarmos a sair, na primeira vez que fui à casa onde ele morava com os pais, ele mandou a pergunta, na lata: "Já ouviu falar no escritor Stefan Zweig?". Naqueles tempos, sem Google nem celular com internet, não era fácil disfarçar a ignorância. Nem tinha entendido direito como era o nome, Stefan o quê? Falei que não sabia. E ele explicou resumidamente: era um escritor austríaco consagrado que veio para o Brasil nos tempos da Segunda Guerra e escolheu Petrópolis para viver nos meses finais de sua vida. E soltou: "Ele morava aqui nesta casa. Foi aqui que ele se matou."

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Daí ele contou que a casa tinha sido tombada, algo que a família dele ficou sabendo anos antes por um canal de TV petropolitano. Era uma casa simples, mas charmosinha, com aquela varanda grande na frente, numa esquina que separava a região central da cidade de um bairro mais bacana, o Valparaíso. Anos depois, já formada, reencontrei o ex-namorado numa festa no Rio e ele contou que os pais dele não moravam mais lá, tinham vendido a casa. Ponto, fim da história.

No início deste ano, soube que, após anos com o nome Casa Stefan Zweig sem nenhuma mudança física nem atividades culturais, o lugar entrará em reformas para se transformar em museu. O poeta e designer André Vallias, um dos personagens de uma reportagem que fiz meses atrás sobre webpoesia, estava envolvido na organização de uma mostra multimídia sobre Zweig em Petrópolis e me escreveu pra avisar. Mandou imagens de como a casa era em 1941, quando o austríaco se mudou para lá (ele e a segunda mulher se mataram meses depois, após um pacto, em fevereiro de 1942, desesperançados com o mundo) e do projeto do museu, que, se tudo der certo, será aberto para o público em agosto.

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 Foto: Estadão
 Foto: Estadão

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Um dos objetivos da mostra em Petrópolis é justamente anunciar o início dessas reformas. Uma exposição numa cidade média fluminense dificilmente renderia reportagem grande num jornal paulistano, mas, como tenho lá uma relação afetiva  com a cidade, resolvi ir atrás. Conversei com o jornalista Alberto Dines, diretor da casa e biógrafo de Zweig, e soube que além do museu ele também prepara mais dois livros sobre o autor. O resultado foi publicado no Sabático de ontem, 22/1, e segue abaixo.

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70 anos depois de escrever Brasil, Um País do Futuro e se instalar em Petrópolis, onde daria fim à vida, Stefan Zweig terá museu na cidade e livro sobre a sua rede de amizades

Raquel Cozer - O Estado de S.Paulo

Foi sem festa, com discrição, que entrou em cartaz em Petrópolis, no último dia 14, uma mostra multimídia sobre o escritor austríaco Stefan Zweig (1881- 1942). No dia anterior, a cidade havia amanhecido em luto pelas destruições da pior chuva em décadas a atingir a região serrana fluminense. A organização decidiu cancelar o evento de abertura, de modo que muitos daqueles que passaram desde então pelo Centro de Cultura Raul de Leoni, onde também fica a principal biblioteca da cidade, foram pegos de surpresa pela homenagem a um dos mais célebres moradores que Petrópolis já teve.

Não muito longe dali, há exatos 70 anos, Zweig encontrou o refúgio para os momentos finais de sua vida, ao lado da segunda mulher, Lotte. Uma "casa minúscula, mas com um amplo terraço coberto e uma bela vista", como descreveu o já então consagrado autor em setembro de 1941. E que, neste ano, passará a abrigar um centro de memória dedicado não só a Zweig, mas a vários intelectuais que, como ele, encontraram abrigo no Brasil durante os horrores da 2.ª Guerra - estão incluídos aí nomes como Otto Maria Carpeaux, ensaísta austríaco; Paulo Rónai, tradutor nascido na Hungria; e George Bernanos, ficcionista francês.

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Tombada desde os anos 80 e comprada do antigo morador em 2005, a Casa Stefan Zweig acaba de entrar em obras para a inauguração como museu, conforme projeto do arquiteto Miguel Pinto Guimarães. A meta é que a reforma esteja concluída em agosto, quando se completam sete décadas de um livro-chave do austríaco, Brasil, Um País do Futuro, escrito nos meses anteriores à mudança para Petrópolis. O intervalo entre a aquisição da casa e o início das obras é explicado por questões kafkianas, segundo o diretor da instituição e principal biógrafo de Zweig, Alberto Dines. "Para fazer qualquer reforma era necessário fazer pedidos por escrito, mostrar pesquisas históricas e geológicas, porque a casa estava tombada. O curioso é que durante anos o lugar sofreu alterações. Ou seja, desfigurar foi fácil, difícil foi provar a importância de reconfigurar", diz o jornalista, cuja biografia de Zweig, Morte no Paraíso, lançada em 1981, foi fundamental para a renovação do interesse do público brasileiro pelo escritor, o que levou ao tombamento da construção.

O local, que incluirá biblioteca e auditório, privilegiará exposições audiovisuais. O jornalista deixará no museu seu próprio acervo sobre Zweig, que inclui livros e fotos - a maior parte do material que o austríaco doou à biblioteca municipal de Petrópolis antes de morrer se perdeu; outros documentos estão conservados na Fundação Biblioteca Nacional. Pesquisadores comandados pelo historiador carioca Fábio Koifman agora tratam de encontrar no Arquivo Nacional documentos sobre outros intelectuais a serem lembrados nessa espécie de "museu dos exilados" - por coincidência, a Casa Stefan Zweig fica na Rua Gonçalves Dias, batizada em homenagem ao poeta criador da Canção do Exílio.

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Stefan Zweig Vive!, a exposição multimídia atualmente em cartaz na cidade, organizada por Dines e pelo poeta e designer André Vallias, é a primeira homenagem do que o jornalista chama de "ano Stefan Zweig", juntando as efemérides do lançamento de Brasil, Um País do Futuro; os 130 anos do nascimento do escritor, em novembro; e os 70 anos de sua morte, em fevereiro de 2012. Além da mostra e do museu, Dines pretende lançar duas edições fac-similares de material deixado por Zweig.s, é um conceito amplo demais.

A primeira delas será um volume contendo a "rede social" do escritor, feito a partir de uma cópia da agenda telefônica que o austríaco trouxe consigo ao chegar ao Brasil e que inclui contatos de pessoas próximas a ele, como os alemães Thomas Mann e Albert Einstein, o regente húngaro Eugen Szenkar (primeiro diretor artístico da Orquestra Sinfônica Brasileira) e, entre os brasileiros, o jurista Afonso Arinos de Melo Franco e o empresário Roberto Simonsen (o responsável pela orientação de toda a parte econômica de Brasil, Um País do Futuro). "São cerca de 150 nomes, já pesquisamos a maioria. Alguns não conseguimos, são absolutamente desconhecidos", afirma Dines, que agora organiza fichas biográficas de cada nome, a entrarem no livro junto com as reproduções da agenda.

A outra edição fac-similar terá como base o manuscrito de Zweig para uma conferência que proferiu em 1936 no Rio, em sua primeira visita ao Brasil, e que repetiria com poucas variações anos depois em Buenos Aires, sob o título A Unidade Espiritual do Mundo. "Foi num momento em que tinha acabado de começar a Guerra Civil Espanhola, em que o nazismo já botava os dentes para fora, e vinha o cara falar sobre unidade espiritual. Devia parecer ingenuidade naquela época, mas o curioso é que hoje esse virou um tema importante para a ONU, discutido nos fóruns Aliança das Civilizações", avalia Dines.

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É possível dizer que Zweig foi visionário nessa discussão, assim como, de certa forma, o foi em Brasil, Um País do Futuro, o tratado otimista que daria origem ao aposto mais famoso sobre a república brasileira e às maiores críticas já feitas ao escritor. Afinal, sete décadas depois, o País é apontado como um protagonista no cenário econômico mundial, uma alternativa à qual Zweig apontava lá atrás, embora os problemas internos ainda a superar - e as tragédias na região serrana do Rio são exemplo - façam crer que futuro, no fim das contas, é um conceito amplo demais.

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