Algumas semanas depois de começarmos a sair, na primeira vez que fui à casa onde ele morava com os pais, ele mandou a pergunta, na lata: "Já ouviu falar no escritor Stefan Zweig?". Naqueles tempos, sem Google nem celular com internet, não era fácil disfarçar a ignorância. Nem tinha entendido direito como era o nome, Stefan o quê? Falei que não sabia. E ele explicou resumidamente: era um escritor austríaco consagrado que veio para o Brasil nos tempos da Segunda Guerra e escolheu Petrópolis para viver nos meses finais de sua vida. E soltou: "Ele morava aqui nesta casa. Foi aqui que ele se matou."
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Daí ele contou que a casa tinha sido tombada, algo que a família dele ficou sabendo anos antes por um canal de TV petropolitano. Era uma casa simples, mas charmosinha, com aquela varanda grande na frente, numa esquina que separava a região central da cidade de um bairro mais bacana, o Valparaíso. Anos depois, já formada, reencontrei o ex-namorado numa festa no Rio e ele contou que os pais dele não moravam mais lá, tinham vendido a casa. Ponto, fim da história.
No início deste ano, soube que, após anos com o nome Casa Stefan Zweig sem nenhuma mudança física nem atividades culturais, o lugar entrará em reformas para se transformar em museu. O poeta e designer André Vallias, um dos personagens de uma reportagem que fiz meses atrás sobre webpoesia, estava envolvido na organização de uma mostra multimídia sobre Zweig em Petrópolis e me escreveu pra avisar. Mandou imagens de como a casa era em 1941, quando o austríaco se mudou para lá (ele e a segunda mulher se mataram meses depois, após um pacto, em fevereiro de 1942, desesperançados com o mundo) e do projeto do museu, que, se tudo der certo, será aberto para o público em agosto.
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Um dos objetivos da mostra em Petrópolis é justamente anunciar o início dessas reformas. Uma exposição numa cidade média fluminense dificilmente renderia reportagem grande num jornal paulistano, mas, como tenho lá uma relação afetiva com a cidade, resolvi ir atrás. Conversei com o jornalista Alberto Dines, diretor da casa e biógrafo de Zweig, e soube que além do museu ele também prepara mais dois livros sobre o autor. O resultado foi publicado no Sabático de ontem, 22/1, e segue abaixo.
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70 anos depois de escrever Brasil, Um País do Futuro e se instalar em Petrópolis, onde daria fim à vida, Stefan Zweig terá museu na cidade e livro sobre a sua rede de amizades
Raquel Cozer - O Estado de S.Paulo
Foi sem festa, com discrição, que entrou em cartaz em Petrópolis, no último dia 14, uma mostra multimídia sobre o escritor austríaco Stefan Zweig (1881- 1942). No dia anterior, a cidade havia amanhecido em luto pelas destruições da pior chuva em décadas a atingir a região serrana fluminense. A organização decidiu cancelar o evento de abertura, de modo que muitos daqueles que passaram desde então pelo Centro de Cultura Raul de Leoni, onde também fica a principal biblioteca da cidade, foram pegos de surpresa pela homenagem a um dos mais célebres moradores que Petrópolis já teve.
Não muito longe dali, há exatos 70 anos, Zweig encontrou o refúgio para os momentos finais de sua vida, ao lado da segunda mulher, Lotte. Uma "casa minúscula, mas com um amplo terraço coberto e uma bela vista", como descreveu o já então consagrado autor em setembro de 1941. E que, neste ano, passará a abrigar um centro de memória dedicado não só a Zweig, mas a vários intelectuais que, como ele, encontraram abrigo no Brasil durante os horrores da 2.ª Guerra - estão incluídos aí nomes como Otto Maria Carpeaux, ensaísta austríaco; Paulo Rónai, tradutor nascido na Hungria; e George Bernanos, ficcionista francês.
Tombada desde os anos 80 e comprada do antigo morador em 2005, a Casa Stefan Zweig acaba de entrar em obras para a inauguração como museu, conforme projeto do arquiteto Miguel Pinto Guimarães. A meta é que a reforma esteja concluída em agosto, quando se completam sete décadas de um livro-chave do austríaco, Brasil, Um País do Futuro, escrito nos meses anteriores à mudança para Petrópolis. O intervalo entre a aquisição da casa e o início das obras é explicado por questões kafkianas, segundo o diretor da instituição e principal biógrafo de Zweig, Alberto Dines. "Para fazer qualquer reforma era necessário fazer pedidos por escrito, mostrar pesquisas históricas e geológicas, porque a casa estava tombada. O curioso é que durante anos o lugar sofreu alterações. Ou seja, desfigurar foi fácil, difícil foi provar a importância de reconfigurar", diz o jornalista, cuja biografia de Zweig, Morte no Paraíso, lançada em 1981, foi fundamental para a renovação do interesse do público brasileiro pelo escritor, o que levou ao tombamento da construção.
O local, que incluirá biblioteca e auditório, privilegiará exposições audiovisuais. O jornalista deixará no museu seu próprio acervo sobre Zweig, que inclui livros e fotos - a maior parte do material que o austríaco doou à biblioteca municipal de Petrópolis antes de morrer se perdeu; outros documentos estão conservados na Fundação Biblioteca Nacional. Pesquisadores comandados pelo historiador carioca Fábio Koifman agora tratam de encontrar no Arquivo Nacional documentos sobre outros intelectuais a serem lembrados nessa espécie de "museu dos exilados" - por coincidência, a Casa Stefan Zweig fica na Rua Gonçalves Dias, batizada em homenagem ao poeta criador da Canção do Exílio.
Stefan Zweig Vive!, a exposição multimídia atualmente em cartaz na cidade, organizada por Dines e pelo poeta e designer André Vallias, é a primeira homenagem do que o jornalista chama de "ano Stefan Zweig", juntando as efemérides do lançamento de Brasil, Um País do Futuro; os 130 anos do nascimento do escritor, em novembro; e os 70 anos de sua morte, em fevereiro de 2012. Além da mostra e do museu, Dines pretende lançar duas edições fac-similares de material deixado por Zweig.s, é um conceito amplo demais.
A primeira delas será um volume contendo a "rede social" do escritor, feito a partir de uma cópia da agenda telefônica que o austríaco trouxe consigo ao chegar ao Brasil e que inclui contatos de pessoas próximas a ele, como os alemães Thomas Mann e Albert Einstein, o regente húngaro Eugen Szenkar (primeiro diretor artístico da Orquestra Sinfônica Brasileira) e, entre os brasileiros, o jurista Afonso Arinos de Melo Franco e o empresário Roberto Simonsen (o responsável pela orientação de toda a parte econômica de Brasil, Um País do Futuro). "São cerca de 150 nomes, já pesquisamos a maioria. Alguns não conseguimos, são absolutamente desconhecidos", afirma Dines, que agora organiza fichas biográficas de cada nome, a entrarem no livro junto com as reproduções da agenda.
A outra edição fac-similar terá como base o manuscrito de Zweig para uma conferência que proferiu em 1936 no Rio, em sua primeira visita ao Brasil, e que repetiria com poucas variações anos depois em Buenos Aires, sob o título A Unidade Espiritual do Mundo. "Foi num momento em que tinha acabado de começar a Guerra Civil Espanhola, em que o nazismo já botava os dentes para fora, e vinha o cara falar sobre unidade espiritual. Devia parecer ingenuidade naquela época, mas o curioso é que hoje esse virou um tema importante para a ONU, discutido nos fóruns Aliança das Civilizações", avalia Dines.
É possível dizer que Zweig foi visionário nessa discussão, assim como, de certa forma, o foi em Brasil, Um País do Futuro, o tratado otimista que daria origem ao aposto mais famoso sobre a república brasileira e às maiores críticas já feitas ao escritor. Afinal, sete décadas depois, o País é apontado como um protagonista no cenário econômico mundial, uma alternativa à qual Zweig apontava lá atrás, embora os problemas internos ainda a superar - e as tragédias na região serrana do Rio são exemplo - façam crer que futuro, no fim das contas, é um conceito amplo demais.