Casa da mãe de Thomas Mann em Paraty vive situação calamitosa

No último dia da Flip deste ano, no mês passado, o fotógrafo Wilton Junior e eu arrumamos tempo para ver de perto, na baía de Paraty, a casa de fazenda em que viveu Julia da Silva Bruhns, a mãe de Heinrich e Thomas Mann, do nascimento até os sete anos de idade. As últimas informações davam conta de que o estado do casarão, o único do século 18 do gênero naquela região, era deplorável.

PUBLICIDADE

Foto do author Redação
Por Redação
Atualização:

Quem primeiro comentou comigo sobre os planos de Johannes Kretschmer, da UFF, de retomar o projeto de um centro cultural no local foi a Ju Lugão, ex-colega de Ilustrada, que hoje faz na PUC-Rio mestrado em literatura alemã. Isso foi bem no começo do ano, logo depois que saiu no Sabático uma reportagem minha sobre o museu que será inaugurado na casa de Stephan Zweig, em Petrópolis.

PUBLICIDADE

Mantive contato com o Johannes até que, há um mês, comecei a apuração, porque precisava ver a casa antes de me meter a falar sobre ela. Como disseram vários entrevistados, a situação legal do imóvel é complicada, e aí entram mudanças de proprietários, questões ambientais e limitações patrimoniais para uso do imóvel, o que afasta interessados há anos. E os interesses também não são nem sempre dos mais louváveis para uma construção de importância histórica como essa. O que se ouve de histórias desencontradas não é pouco. O resumo que deu para fazer em uma página foi a capa do Caderno 2 de hoje.

***

Patrimônio em risco

Impasses legais e interesses econômicos agravam situação da casa da mãe de Thomas Mann em Paraty

Publicidade

 Foto: Estadão

Raquel Cozer - Enviada especial / Paraty - O Estado de S.Paulo

 

Ao lado de luxuosa marina a 8 km de Paraty, a única casa de fazenda do século 18 remanescente à beira mar na região vive situação calamitosa: paredes tomadas por mofo, vigas de madeira apodrecidas e telhado invadido por mato, chegando a formar cipós. Por frestas, vê-se que o interior virou um depósito de entulho.

Não bastasse a importância patrimonial, o descaso chama a atenção pela relevância cultural do chamado Engenho Boa Vista. Lá viveu a mãe de dois dos maiores escritores alemães do século 20, Heinrich (1871-1950) e Thomas Mann (1875-1955) - e cada vez mais especialistas estudam os reflexos dessa ascendência brasileira na formação dos dois autores.

Nascida numa viagem entre Angra dos Reis e Paraty, Julia da Silva Bruhns (1851-1923) passou os sete primeiros anos de vida na casa, antes de ser levada à Alemanha. Filha de comerciante alemão e de brasileira descendente de portugueses, ela legou aos filhos memórias por escrito do lugar que chamava de "paraíso".

Por muito tempo, a história da casa foi desconhecida. Até que, em 1997, o escritor Frido Mann, neto de Thomas, iniciou esforços para construir um centro cultural no local. Criou a Associação Casa Mann, que chegou a realizar evento na propriedade, mas, oito anos depois, entregou os pontos. "Em 2005, desistimos do projeto", diz Paulo Soethe, professor da UFPR, que integrava a associação. "A situação legal da casas era complicada. Não seria possível fazer nada como pessoa física ou associação. Entendemos que era questão de Estado."

Publicidade

 Foto: Estadão

Naquela época, Amyr Klink, comodatário do terreno onde fica a casa, tinha planos para o local. O navegador, que mantém logo ao lado a Marina do Engenho, estudava instalar ali sua escola de navegação para jovens carentes. Impasses com órgãos como Ibama e Iphan impediram a implantação do Projeto Escola Mar, transferido para Santa Catarina.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Três anos atrás, o professor de literatura da UFF e da Uerj Johannes Kretschmer retomou o projeto do centro cultural. Desse movimento resultou colóquio que acontece neste mês (leia abaixo). Kretschmer hoje conversa com a Secretaria de Estado da Cultura do Rio e o Consulado Geral da Alemanha no Brasil - e entende os obstáculos encontrados pelo neto de Thomas Mann. "A questão legal é muito obscura."

Há mais de uma década, o terreno da casa pertencia à Serrana Empreendimentos. Em 2001, a empresa Arbeit adquiriu a Serrana junto com um grupo suíço. A casa veio, por assim dizer, de brinde - não havia interesse específico na construção, diz o presidente da Arbeit, Oscar Muller.

Com a saída dos investidores suíços do País, a Arbeit tornou-se em 2008 a única dona do casarão. Desde então, estuda alternativas para a ocupação, que passam ao largo dos planos acalentados por Frido e Kretschmer. "A implantação de um centro cultural no casarão não se sustenta", diz Muller, que planeja uma marina de "padrão internacional". Segundo ele, um contrato até já foi fechado. O empresário diz estar "estudando" a manutenção do contrato com Klink para a área da marina e a possibilidade de "reassumir a posse do casarão". "Implantar no local uma pousada/bangalôs com um restaurante também já demonstra viabilidade econômica", especula.

 Foto: Estadão

Para aumentar o burburinho, há pouco espalhou-se em Paraty a notícia de que a empresa proprietária havia falido e que a casa iria a leilão. Muller nega com veemência. E responsabiliza Amyr Klink pelo mau estado da construção. "O contrato de comodato estabelecia que ele implantasse no local o instituto Projeto Escola do Mar. Amyr só implantou uma marina e transformou o casarão em galpão, hoje em péssimo estado. Por contrato. ele deveria manter o casarão com suas características originais."

Publicidade

Klink afirma que questões contratuais e relativas a órgãos ambientais impediram os restauros. "A conservação é de minha responsabilidade, mas não a reforma. O problema é que a casa está num estado em que conservação não basta. Uma reforma dependia da participação deles e de uma autorização que nunca conseguimos."

O navegador diz que, quando assumiu a fazenda, a casa estava em "completa ruína". "Refiz o piso, pus o telhado, troquei as portas. A parte estrutural, que estava caindo, foi recuperada. Era o máximo que podíamos fazer sem contrariar o Iphan." Cinco anos atrás, ele chegou a orçar o restauro como "deveria ser feito": R$ 1,8 milhão, no mínimo.

Interessados sempre aparecem - até Rogério Fasano planejou lá um restaurante -, mas nada avança. Com Frido, Klink se desentendeu. "Não gostei da forma como ele chegava, com jornalistas, dizendo que ia fazer e acontecer." A briga deu ao navegador a fama de não gostar de um projeto cultural no lugar. "Pelo contrário: essa é a vocação natural da casa", diz.

 Foto: Estadão

 

***

Diálogo entre culturas e influências

Publicidade

 

Prestes a morrer, em 1923, Julia Mann começou a falar num idioma que o filho caçula, sem entender, acreditava ser português. O relato de Viktor é lembrado pela estudiosa Marianne Krull no documentário Memórias do Paraíso (2005), de Marcos Strecker, e dá a dimensão da importância para Julia daqueles breves sete anos que viveu no Brasil. O filme será uma das atrações do 1º Colóquio Internacional Intermediações Culturais Brasil-Alemanha, que acontece entre os dias 26 e 28 na Casa de Cultura de Paraty. Organizado por Johannes Kretschmer e outros estudiosos, o evento pretende jogar luz sobre a revisão que se tem feito nas últimas décadas acerca da importância da ascendência brasileira para as vidas e obras dos irmãos Mann.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.