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'Não me vejo como homem, não me vejo como mulher. Não gosto de definições', diz Silvero Pereira

Em ‘A Força do Querer’, ator ajuda a debater gênero e preconceito como a travesti Elis Miranda, que, de dia, vira o motorista Nonato

Por Adriana Del Ré
Atualização:

Em seu primeiro trabalho na TV, Silvero Pereira tem na novela das 9, A Força do Querer, um dos grandes desafios da carreira: viver dois papéis na mesma trama. Na verdade, o ator cearense interpreta um só personagem, a travesti transformista Elis Miranda, que, como ela mesma já disse, se ‘veste’ de Nonato para conseguir manter seu emprego como motorista de Eurico (Humberto Martins) enquanto luta pelo sonho de ganhar a vida como artista. “Diante da sociedade patriarcal e machista em que a gente vive, em que o homem é sempre muito visto em primeiro lugar, o que mais me deixa feliz é que as pessoas neste momento da trama começam a enxergar mais a personagem Elis Miranda e menos o Nonato. Porque, no início da trama, se falava muito nele, e tem ficado claro que não é o Nonato, que a Elis se traveste de Nonato para sobreviver”, diz o ator de 35 anos, ao Estado.

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Segundo Silvero, que estuda o assunto há anos em sua trajetória no teatro, essa situação vivida por Elis reproduz a realidade. “Tem muitas histórias de meninas que sofrem diariamente com o fato de não conseguir emprego por serem travestis e, por causa disso, saíram da escola muito cedo e a formação ficou muito baixa. Com essa formação básica, fica difícil conseguir emprego, principalmente quando se tem uma imagem estereotipada, caricatural da travesti, que não é exatamente isso, mas a nossa sociedade traz muito essa ideia que a travesti é uma marginal.”

Nessas mudanças de Nonato para Elis, ou vice-versa, Silvero exibe nuances de interpretação, realçando assim as diferenças extremadas de personalidades entre os dois. Nonato é mais introspectivo, com olhos furtivos e postura corporal contida, como se sentisse desconfortável naquela persona. Já Elis Miranda é sorridente, expansiva, alegre, segura, como sendo ali seu verdadeiro eu. Um trabalho de composição impecável, acompanhado por figurinos também distintos: Nonato usa cabelos presos e roupas escuras, e Elis solta os cabelos e adora roupas coloridas. “A princípio, (a construção do personagem) partiu de uma maneira muito generosa da Glória (Perez, a autora) de me enxergar como o ator que tem várias facetas. É meu primeiro trabalho na televisão. Ela queria muito mostrar que consigo fazer papéis completamente diferentes, por isso ela me traz o Nonato e a Elis. São bem diferentes, e isso ficou muito claro desde o início”, conta o ator, que quer continuar a ser instigado caso apareçam outras boas oportunidades na TV.

Silvero Pereira:primeiro papel na TV;consagração veio na peça 'BR-Trans'. FOTO: WILTON JUNIOR/ESTADÃO 

“No teatro, há 17 anos, também venho construindo uma figura que é dentro desse universo da travesti, da transexual, que, inclusive, me fez criar o grupo (teatral) As Travestidas. Essa imagem é muito presente no meu trabalho, é meu carro-chefe, mas sou ator de outras facetas. Adoraria ser desafiado a fazer personagens mais Nelson ‘Rodriguianos’, mais machões.”  Silvero foi convidado a integrar a novela depois que Glória Perez o viu em cena no elogiado monólogo BR-Trans, escrito e protagonizado por ele. Há 4 anos rodando pelo Brasil – com passagens também no exterior –, a peça foi construída com base em pesquisas e histórias reais colhidas em conversas com travestis, transformistas e transexuais.

“Esse personagem não existia na trama da novela, ele foi criado depois que ela (Glória) assistiu ao espetáculo, e ela pensou na possibilidade de eu integrar o elenco a partir dessa nova ideia dela de ter uma personagem que pudesse transitar entre masculino e feminino.” Na trama, Elis também faz contraponto com a Ivana (Carol Duarte), para “explicar melhor as diferenças entre gênero”, completa Silvero. A personagem Ivana passa agora pela fase de transição para o gênero oposto. 

E, para o ator, qual a importância desses debates em uma novela? “Vivemos numa sociedade que tem uma deficiência de informação, por isso, vivemos numa sociedade pré-conceituosa, e essa deficiência se dá, principalmente, por conta da educação e das políticas públicas. Na política pública, por exemplo, a bancada conservadora é muito maior do que uma bancada mais libertária. Então, esses conceitos demoram para chegar a virar lei e depois a ser inseridos na sociedade. A educação é a mesma coisa. Até um estudo virar uma tese e essa tese cair no dia a dia é um pouco mais complicado”, analisa ele.

Como Elis Miranda. A travesti no palco: figura mais livre e feliz. Foto:ESTEVAM AVELLAR/TV GLOBO 

“Então, uma novela que consegue atrelar questões sociais com entretenimento, mas, principalmente, de maneira artística, ela consegue de uma forma muito mais imediata atingir o telespectador pela catarse, pela identificação, pela emoção. Assim, de uma maneira sutil, a gente consegue abrir as cabeças para esse novo conceito de sociedade, que é uma sociedade mais livre.”

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Nascido em Mombaça, sertão do Ceará, Silvero Pereira é filho de mãe lavadeira e pai mestre de obras, que sempre o incentivaram a estudar. Aos 13 anos, se mudou para a capital Fortaleza em busca de melhores oportunidades, deixando em sua cidade natal os pais e os irmãos. Foi morar com os tios. Olhando para trás, hoje, ele e a família veem que a escolha foi a mais acertada. Silvero se graduou em Artes Cênicas. Entre 2000 e 2002, já estava bastante envolvido com teatro, trabalhando e pesquisando sobre questões sociais. “Fui me envolvendo com as histórias de travestis, transformistas, porque eu não entendia como as transformistas faziam tanto sucesso em boates, mas, dentro do teatro, elas nunca tinham espaço.” Em 2002, estreou a peça Uma Flor de Dama. “Aí surgiu o coletivo artístico As Travestidas, que existe até hoje. Tem transgênero, gay, heterossexual. A gente é um grupo muito livre, muito aberto.”

Como Nonato.O motorista: atuação mais introspectiva e contida 

Morando com seu companheiro há 9 anos, Silvero diz que não gosta de ser enquadrado por gênero. “Não me vejo como homem, não me vejo como mulher. Não gosto de definições”, diz. “Me sinto feliz em acreditar que posso ir para a rua e, se alguma mulher for muito interessante, não quero me privar de me relacionar com ela porque eu me decidi homossexual e não posso ir de encontro ao meu desejo. Isso é o que eu não quero para mim.”

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