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Análise: a fantástica experiência de Luiz Fernando Carvalho em 'Dois Irmãos'

Tempo e memória são elementos cruciais na série

Por Sergio Mota
Atualização:

Dois irmãos, a série, não é uma adaptação, mas um diálogo com a obra de Milton Hatoum. A direção magistral de Luiz Fernando Carvalho é teatral, como sempre. Para ele, o teatro é um poderoso elemento mítico. O contato com a literatura traz a possibilidade de nos aproximarmos de uma certa teatralidade. É por essa fresta que entra o tempo, o verdadeiro protagonista de Carvalho, de toda a sua obra irrepreensível.

Todas as variedades de existencialismo, tanto passadas como contemporâneas, são tipos literários de filosofia. A "existência" a respeito da qual falam é a existência humana como a direita e imediatamente experimentada pelo próprio indivíduo, não a estrutura objetiva de sua vida como se apresenta a um observador de fora, seja cientista, seja historiador. O tempo - ou qualquer outra categoria existencialista - só é significativa dentro do mesmo contexto de experiência pessoal, não dentro do contexto da natureza. Desse ponto de vista, a literatura também tem sido sempre "existencial", pois sempre lidou somente com aspectos do tempo considerados nas vidas dos seres humanos.

Cauã Reymond é um dos destaques de 'Dois Irmãos' Foto: TV Globo/Divulgação

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Assim, o tempo sentido é uma categoria indispensável para a vida. Entretanto, aplicando essa categoria a uma descrição de vida humana, seja literária ou científica, somos confrontados de novo com um dilema peculiar. Por um lado, o tempo pertence à essência; por outro lado, a natureza do tempo e as experiências no tempo são tais que parecem afastar o objetivo dessa descrição: a possibilidade de reconstruir e justificar a noção de uma vida contínua ou de um eu idêntico. E não faz qualquer diferença olhar o tempo como parte da natureza ou parte de nossa experiência pessoal. Os aspectos "qualitativos" do tempo nas experiências e as nulidades "quantitativas" do tempo físico parecem originar o mesmo dilema: ambos parecem descontínuos, diferentes e não-relacionados; por isso incompatíveis com a crença comum de que a vida de uma pessoa exibe algum sentido de continuidade, correlatividade e identidade. O problema é particularmente agudo porque emerge do contexto da experiência.

Essa longa digressão sobre o tempo e seus desdobramentos parece ser um dos protocolos de leitura da magistral adaptação de Maria Camargo e da suntuosa direção de Luiz Fernando Carvalho para o romance de Milton Hatoum. Digo isso, principalmente, porque a série (mais que o romance) articula com engenhosidade a relação entre tempo e narrativa. Essa história de solidão, de ódio, de dramas familiares, de ciúme, de inveja, de encontros, desencontros, de silêncios e de perdas também são histórias de lugares, lugares visitados, espaços do presente, do passado, sempre vistas por ângulos, perspectivas e olhares diferentes. Na verdade, são lugares de memórias. Assim, a angústia do narrador (o mesmo no romance e na adaptação, sem abusar do recurso literário) e? encontrar a resposta: afinal, quem e? seu pai?. Com esse objetivo, engendra uma narrativa que amalgama as lembranças da mãe (Domingas, testemunha ocular) e as suas, para recompor sua própria história. Quase literal sem deixar de ser autoral, a adaptação dirigida por Carvalho, mais ainda que no romance de Hatoum, sofre mudanças na tipologia discursiva e muitos cortes cronológicos. Em quase toda a extensão do romance, apesar de ser o texto menos autobiográfico de Hatoum, o autor alterna suas reminiscências e a ação que acontece no presente dentro do fluxo temporal proposto pela história. Há um lugar da família, extensão do espaço de Manaus, do Rio Negro. Ruínas, passagem do tempo diante do drama familiar. Tempo costurado, cheio de idas e vindas.

Se há, portanto, uma oscilação narrativa entre os momentos que deseja narrar, pode-se observar uma mescla de tempos verbais usados para descrever um recorte específico no tempo. O narrador salta abruptamente do presente para o passado próximo. Depois, para um passado distante, novamente para o presente, e assim prossegue. É admirável como a voice over da adaptação televisiva de Maria Camargo (e a edição por consequência) conseguem imprimir visualmente essa costura totalmente fragmentada, sem menosprezar a inteligência do espectador. Luiz Fernando Carvalho é realmente um gênio, uma exceção diante da mediocridade que impera na TV. A volta dele ao cinema é mais que urgente, por mais que na TV ele também faça cinema.

Se o tempo como sujeito se chama memória, como dizia o filósofo Gilles Deleuze, tal afirmação cai como uma luva na adaptação de Dois irmãos. Da mesma forma que Virginia Woolf conseguiu integrar às suas narrativas uma simultaneidade de eventos e criou com isso uma nova concepção de tempo narrativo, que mais tarde veio a se chamar "forma espacial do romance", a história se aproxima conceitualmente disso no acúmulo de episódios e (auto) reflexões que atravessam seu relato, construindo uma espécie de diegese particular (basta mencionar a presença de Antônio Fagundes no barco diante do rio, uma espécie de voz do saber ao lado da voice over que, sem ser exagerada e recorrente, aparece). O que Halim não teve a capacidade de realizar com seus filhos gêmeos conseguiu com o neto ilegítimo: a dádiva da interlocução. 

A diegese como uma sucessão de eventos é inconcebível fora do fluxo do tempo. Esse tempo comporta um tempo objetivo, delimitado e caracterizado por indicadores cronológicos atinentes ao calendário do ano - anos, meses e dias. Maria Camargo e Luiz Fernando Carvalho entendem que a história de Hatoum se organiza dentro dessa lógica, mas abre outras frentes, porque a diegese comporta outro tempo, mais fluido e complexo - o subjetivo, vivencial dos personagens. Em especial, Halim, o pai, Zana, a mãe, e os gêmeos que se odeiam. Sem esquecer de Domingas, Nael e Rânia. A todo tempo, o narrador parece catar fragmentos soltos de memória, para assumir um olhar crítico e não aceitar uma distância de si, pelo menos nos três primeiros episódios a que assisti. Parece narrar tendo sua sombra sempre ao lado. O desdobramento referido tem a função de acumular os episódios e ao mesmo tempo dar vida e movimento a essas histórias que, na impossibilidade de contenção, revelam-se e se entrechocam no processo (auto) analítico proposto pelo narrador, que frequenta a casa da família, mas será sempre o filho bastardo. 

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Por fim, o narrador assume, na composição de seu mosaico memorialístico, uma postura detetivesca durante a contemplação dos fatos, com a clara intenção de recortar fragmentos de realidade bastante específicos, ao mesmo tempo que procura a revelação do verdadeiro sentido das cenas de sua vida, desse cinema que se desorganiza diante do espectador. No entanto, é fundamental dizer que a narrativa não é uma simples reunião de fatos que se querem acontecimentos ou uma antologia de situações que chegarão a um termo. Trata-se de um fluxo sem interrupção que sustenta um ritmo sequencial com efeito que se parece muito com a técnica cinematográfica diante da necessidade de uma justaposição de imagens em mobilidade. O que vemos em Dois irmãos é um mergulho vertical na memória, quase sempre completa e imperfeita.  

* SERGIO MOTA É PROFESSOR DE CINEMA BRASILEIRO E DE LITERATURA DA PUC-RIO E CURADOR DE CINEMA E TEATRO DO CCJF

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