PUBLICIDADE

Velha Companhia retoma o golpe militar e discute transgênero em família reacionária

Denise Weinberg vive mãe de Vicente, personagem de Kiko Marques que nasceu uma ano depois da ditatura

Por Leandro Nunes
Atualização:

Talheres trincam em bacias prateadas. Há muito o que ver e ouvir em Sínthia, novo espetáculo da Velha Companhia, que estreia neste sábado, dia 20, no Espaço dos Fofos.

Depois de uma longa temporada com Cais ou da Indiferença das Embarcações – dramaturgia que estreou em 2012 e abocanhou todos os prêmios do ano, além de ter viajado pelo País até janeiro –, a companhia cofundada por Kiko Marques deixa o tema da revolução de 1930 e o Estado Novo investigados nas ondas de Ilha Grande (RJ) para mergulhar nas “águas paradas da ditadura”.

Matriarca. Denise Weinberg assume o papel da mãe de Vicente, o filho mais novo que foi esperado por ela como menina Foto: Lenise Pinheiro|Divulgação

PUBLICIDADE

É assim que o diretor e ator define a montagem que traz Denise Weinberg no papel da mãe de Vicente. A peça tem um tom autobiográfico, já que Marques nasceu no dia 31 de março de 1965, um ano após o golpe que depôs o presidente João Goulart. “Vicente vive nesse momento de silêncio, no qual as coisas mudaram muito rapidamente, mas ainda não é possível compreender no que vão se transformar.”

E transformação é algo a se observar na montagem. A mãe de Vicente teve dois meninos e na terceira gravidez desejava que fosse uma menina. Marques, então, vai permear a questão do transgênero por uma via bastante incomum do que é visto no teatro em geral. Denise ressalta que a peça não pretende retratar um personagem ativista ou “montado”, ainda que o embrião da história esteja nos duros anos da repressão militar. “Vicente ama sua mãe e descobre que ela sempre desejou ter uma filha. Em um momento, quando ela mais precisa, Vicente, de alguma forma vai realizar o sonho da mãe.”

Mestre em conceber longas narrativas, Marques defende uma dramaturgia vagarosa, tal qual foi em Cais, com suas três horas de duração – Sínthia tem 15 minutos a menos. “A nossa contemporaneidade traz uma vida muito agitada. Parece que sempre queremos as experiências mais resumidas. O teatro pode ir na contramão disso e oferecer histórias que façam o tempo correr mais devagar. Trata-se do desafio de manter o espectador ativo e jamais tratá-lo como um idiota.”

O espetáculo que começou a ser gestado ainda em 2014, fez desses dois anos de intervalo um laboratório para composição das diversas figuras presentes e do cruzamento de épocas. No passado, estão Alejandra Sampaio e Henrique Schafer, que vivem o jovem e apaixonado casal. A mãe está grávida e cheia de sonhos, enquanto o marido trabalha duro na administração do exército. Ao menos é o que a mulher sabe, mas a participação dele não inclui apenas preencher papéis. “Eu quis colocar a forte presença militar dentro dessa ‘família-Estado’”, explica ainda Marques.

No tempo presente, ao lado de Denise, estão os três filhos já criados, interpretados por Marcelo Diaz, Marcelo Marothy e Willians Mezzacapa. A matriarca foi especialmente criada para a atriz, que este ano esteve em cartaz no solo O Testamento de Maria. Na peça, ela vive sozinha, lida com a ameaça de um tumor e com a presença burocrática de filhos cada vez mais ocupados. “A gente pensa que ditadura foi um movimento apenas da ordem do poder, mas muitas famílias assimilaram o golpe”, ressalta Denise. “Eu sou filha de lacerdistas, e a família da peça é uma daquelas que apoiaram os militares e cresceram achando tudo isso muito normal”, avalia também.

Publicidade

Um outro tempo atravessa a história, revelando o lado artístico de Vicente. Ele é um músico clássico e professor que está compondo a Sinfonia da Compaixão. Bastante introspectivo, ele conversa com a personagem de Virgínia Buckowski, que também interpreta a neta da matriarca.

SÍNTHIA. Espaço dos Fofos. Rua Adoniran Barbosa, 151. Tel.: 3101-6640. Sáb., dom., 2ª, 20h. R$ 20.  Estreia 20/8. Até 12/9. 

Finalmente, há o aprendiz do músico, vivido por Valmir Sant’anna. Nesse núcleo, o diretor da peça procura discutir as confluências entre a sensibilidade e a vida prática. “Ele ama o que faz e, durante as aulas com seu aprendiz, vai encontrar espaço para refletir sobre a própria vida, criando aberturas que possam transformar a vida dos outros.” E o encontro dos dois se dá de maneira insólita. O jovem músico vai procurar o professor para pedir aulas particulares. Nesse dia, ele perdeu uma aposta com os colegas: quem não conseguisse tocar um trecho até o fim teria que sair de casa usando vestido e enfeites no cabelo. O rapaz vai tentar justificar sua incompetência ao professor: “Uma menina linda cruzou as pernas e me desconcentrei”.

A profundidade concedida aos personagens exigiu que a Sinfonia da Compaixão fosse composta originalmente para o espetáculo, e é assinada pelo quarteto de cordas Quadril, formado apenas por mulheres.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.