Pela segunda vez, o Teatro da Vertigem se volta a Franz Kafka. Em 2010, encenou Kastelo, uma versão do romance homônimo. Agora, com O Filho, em cartaz no Sesc Pompeia, torna a lançar olhos para um dos textos capitais do autor checo, Carta ao Pai.
O expediente aqui se assemelha à primeira experiência. O Vertigem, reconhecido por suas apropriações de espaços públicos – a transformação de um rio, de um hospital e de um presídio em palcos – segue neste caso por outra vereda. É o edifício teatral que deve se transmutar.
Com direção de Eliana Monteiro (e não de Antônio Araujo, que é quem habitualmente assina as produções do grupo), O Filho convida o público a se acomodar em um galpão tomado de sofás gastos, poltronas usadas e outros refugos domésticos. No acurado cenário de Marisa Bentivegna, as cenas se dão nesses interstícios ou em um mezanino que circunda a sala.
A dramaturgia de Alexandre Dal Farra dialoga com a obra de Kafka em palavras e gestos. Visita a Carta ao Pai, mas sem emular propriamente seus conflitos. Será que o pai tirânico do autor de A Metamorfose manteve-se intacto, um século depois? Dal Farra flagra a paternidade em seus presentes dilemas. Eternamente infantilizado – ou temeroso de perder as benesses da juventude –, o homem de hoje insiste em seu papel de filho. Retarda a saída de casa. Não raro, falha em tornar-se pai. O ancestral autoritarismo paterno, então, cede espaço à estupefação diante do novo vínculo e, não raro, ao abandono.
Mudaram os personagens. Alteraram-se a história e a maneira de contá-la. Ainda assim, Kafka parece mais presente neste espetáculo do que em considerável parcela das recentes montagens baseadas em seus escritos.
É preciso ter em mente que poucos artistas do início do século 20 se prestam tão bem aos experimentos do teatro contemporâneo quanto Kafka. Em seu já clássico estudo sobre o autor, Walter Benjamin destacava a potência simbólica de suas narrativas. Também cabe considerar o interesse do escritor checo pelo teatro iídiche, que lhe abriu a perspectiva de perscrutar a expressão corporal, colocando-o diante das limitações da linguagem.
Para dar conta de um mundo fora de ordem, Kafka trazia alguns elementos de estranhamento para um contexto banal. Flagrava quão trivial podia se tornar o grotesco. “Nada é mais assombroso do que a fleuma e a inocência com que Kafka entra nas histórias mais incríveis”, apontou Günther Anders.
Essa alienação do sujeito kafkiano foi apreendida em O Filho e plasmada em seu protagonista. Bruno (Sérgio Pardal) é um homem inconsciente do próprio corpo, incapaz de compreender o afeto ou a repulsa que alimenta pelos outros, guiado por ditames que passam ao largo de sua vontade.
O pai (Antonio Petrin) parte e o manda ficar em casa com uma mulher desconhecida. Ele, sem ação, permanece. A seguir, engravida uma outra mulher e recebe dela a incumbência de criar um filho (Rafael Lozano), que se lhe afigura como um apêndice incômodo. Algum pedaço de carne, dependente, condenado aos limites do próprio corpo e às suas carências. Nesse anti-herói, todo o desejo nasce frouxo. As mulheres o abandonam. Os homens o manipulam como joguete. E beberão, literalmente, o seu sangue.
Ler Kafka é aproximar-se de um tipo de narrador ‘ignorante’. Não aquele que tudo sabe e conhece – mas seu completo oposto. O desconhecimento de si coloca-se como esteio, ponto de partida e de chegada para todos os caminhos.
Como guião dessa trama, o protagonista de O Filho oscila entre o dramático e o narrativo. Sai do diálogo para falar de fora da cena. Mas não importa a posição: permanece em autoalienação, inerte. Em um mundo em que eficiência é a palavra de ordem, ele não pode ser mais que um despojo, exemplar defeituoso de uma imensa linha de produção.
Se o texto cresce nas ambiguidades que abraça – ruídos que atravancam e engrandecem sua estrutura –, a encenação muitas vezes solapa esse espírito. Parcela considerável das imagens criadas não vem senão para ilustrar situações. Uma fidelidade que, neste caso, soa desleal.