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Shakespeare desconstruído e trazido a questões atuais está em cartaz em São Paulo

Brilhante incursão pela tragédia mais famosa de todos os tempos, 'Hamlet - Processo de Revelação' revigora o conflito do príncipe da Dinamarca ao se aproximar do público

Por Maria Eugenia de Menezes
Atualização:

Hamlet é a questão. Não há assunto sobre o qual se tenha escrito tanto. Nem sobre Jesus Cristo nem sobre Hitler. Nada nem ninguém mobilizou tanta energia, tanta tinta e tanto papel neste mundo. E cá estamos novamente a falar de um texto escrito no início do século 17. De uma época em que os primeiros teatros da Inglaterra ainda estavam em construção. De um tempo em que tudo era diferente: os costumes, os valores, as leis. Há aquelas coisas que nunca mudam. 

Hamlet – Processo de Revelação, obra dirigida pelos irmãos Adriano e Fernando Guimarães Foto: Ismael Monticelli

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A proposta de Hamlet – Processo de Revelação, obra dirigida pelos irmãos Adriano e Fernando Guimarães, não consiste propriamente em uma encenação da peça canônica. Como se conduzisse uma palestra, o ator Emanuel Aragão apresenta o texto de forma comentada. Faz apartes, traz curiosidades históricas e discute as questões dramatúrgicas. Mas sem soar moroso ou excessivamente didático. 

Imbuído da vontade de compreender e dar conta da grandiosidade do texto, o intérprete se coloca como se diante de um mistério a ser gradativamente desvendado. A esperteza está em tornar o público cúmplice nessa investigação, incutindo-lhe curiosidades e desconfianças. Ao espectador cabe não apenas compreender ou fazer conjecturas, mas também sentir o vínculo eloquente entre aquela história de ficção e o presente. 

A impressão de conhecermos à exaustão a desgastada máxima do “ser ou não ser” embota o sentido do conflito do príncipe da Dinamarca. Por que motivo essa tragédia, mais do que as outras, provoca tanta fascinação? Estamos a mirar uma matéria viva e incandescente. Porque Hamlet fala de livre-arbítrio e pode ser considerada precursora do existencialismo. Porque muitos a consideram a primeira representação de individualidade. Por todas essas opções e, decerto, por alguma coisa que ressoa em mim de maneira muito diversa daquela que ressoa em você. Nessa versão, a fábula é insuflada de um sentido de urgência, arrastada para o âmago de questões atuais. 

Com um roteiro bastante livre, o espetáculo não tem marcações, pode variar entre duas e três horas, incluir intervenções da plateia ou não. O intérprete discorre sobre sua própria hipótese de tradução. Traz algumas cenas consagradas, narrando-as como se fosse um espectador privilegiado. Reserva mais espaço para detalhes, como o vento gélido que soprava quando o protagonista encontra o fantasma do pai, do que para muitos personagens – Ofélia não é sequer contemplada. Instaura-se, de vez em quando, uma espécie de zona cinzenta, em que não sabemos se quem fala é o ator ou o personagem. É um lugar bonito e inquietante.

Também a biografia de Emanuel entra nessa geleia geral: A morte de seu próprio pai, o desnorteio do luto. Ele nos fala ainda de uma mulher que nunca conheceu a mãe, mas guarda muitas coisas para lhe dizer e de um homem que decidiu morrer, mas se distraiu com o próprio correr da vida. Descritas assim, podem parecer intervenções aleatórias, mas funcionam como um espelho: a oferecer a chance de que cada um enxergue ali seus próprios titubeios e demônios. 

A ideia de uma obra que se assemelhe mais a uma experiência artística completa do que a uma representação teatral é uma constante na trajetória desses diretores, que trabalham na fronteira com as artes visuais e se notabilizaram pelas explorações da escrita de Samuel Beckett. No caso dessa incursão por Shakespeare, impacta a simplicidade dos procedimentos, com uma exposição muito clara e despojada das ideias. 

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Hamlet era um obcecado pelos limites entre interpretação e realidade. Para alcançar a verdade, simula estar louco. Uma das passagens mais impactantes e intrigantes da peça é a chegada de uma companhia teatral à corte. Eis o momento de uma drástica transformação no ânimo do personagem. A resposta de um ator a um luto fingido lhe parece mais eloquente e natural do que a sua própria a um luto que é real. Como distinguir a autenticidade da representação? Que tipo de verdade pode ser contada pelo fingidor? Nesse Hamlet – Processo de Revelação o que se revela, ao fim e ao cabo, é o lugar do teatro: e nos lembramos de sua potência para a discussão do mundo, para a elaboração da dor e a invenção do futuro.

Hamlet – Processo de RevelaçãoSesc Ipiranga. Rua Bom Pastor, 822 Ipiranga - Sul São Paulo - SP (11) 3340-2000 Até 26 de março, domingo. Sextas e sábado, às 21h. Domingo, às 18h. De R$ 12 a R$ 40. 

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