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'Puzzle (d)' é um retrato duro e poético do caos da atualidade

Encenação traz a realidade como caleidoscópio de paixões e contrastes

Por Jefferson Del Rios
Atualização:

Inteligente, jogando com o absurdo, pleno de força literária e cênica, Puzzle (d) é um espetáculo com um elenco excepcional a criar polêmica e diversão. O título, um tanto empostado, poderia ser Quebra-cabeças, mas a montagem inicial foi concebida para a Feira do Livro de Frankfurt. É só um detalhe. 

Puzzle lembra o Café Voltaire, de Zurique, onde se reuniam os dadaístas e parece chegar a Cataguazes, Minas Gerais, onde viveu Rosário Fusco, o insolente e esquecido romancista de O Agressor, que Orson Welles pensou em filmar. Como este é o quarto desdobramento do original (a), é tentador sugerir ao diretor Felipe Hirsch em sua velocidade criativa reler ou dar uma olhada em Fusco e Campos de Carvalho. São escritores de anos atrás, mas no traçado ideológico e poético do projeto caberia bem a palavra atual e visionariamente lúcida do educador, economista e político Cristovam Buarque, expressa em O Erro do Sucesso, a civilização desorientada e a busca de um novo humanismo.

Cena de 'Puzzle (d)' Foto: ADAUTO PERIN

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Uma vez metida a sua colher de pau no assunto, porque o enredo estimula, a crítica segue rumo ao imponente e intencionalmente frágil cenário de Daniela Thomas e Felipe Tassara, uma muralha de papel para intervenções baseadas em textos de Haroldo Campos, André Sant’Anna, Paulo Leminski (o paranaense Emilio Perneta, continuará só nome de rua?) e Roberto Bolaño. Numa transversal do tempo, o Brasil, o continente e o mundo são passados a limpo e a sujo. Desfilam diante do público, o nosso ufanismo oficial, delirante e alienado, comércio religioso, manifestos estéticos, o isolamento do idioma português na América Latina que por sua vez continua com as veias abertas no contexto mundial. 

Estes temas todos estão no palco em palavras, músicas e um humor cético. Nem tudo é claro de imediato, mas existe coerência no que se assiste. Hirsch sabe por onde vai. Texto e imagens reproduzem o que a imprensa alemã decidiu rotular como o estado mental brasileiro (?) e a nossa verdade coletiva além dos clichês. Impasses históricos e a semientropia nacional irrompem ora em citações abertas, ora em jogos de palavras que são convites à memória do espectador: da Semana de Arte Moderna de 1922 ao Movimento Concretista. A representação com simpáticas sequências bilíngues (espanhol e português), de fácil entendimento ou com legendas, tem grandes momentos de Georgette Fadel, Guilherme Weber, Luiz Paetöw e do argentino Javier Drolas. Embora bem interpretado por Luna Martinelli, o texto de Roberto Bolaño ironizando Paulo Coelho está abaixo do talento do autor chileno. Soa como pretexto para uma ressentida menção à conterrânea Isabel Allende, autora de best-sellers. Paulo Coelho é um assunto cansado para a energia de Puzzle. Paradoxo por paradoxo, vale sonhar a inclusão da também chilena Gabriela Mistral, o primeiro Prêmio Nobel de Literatura da América Latina (1945) e ignorada no Brasil. 

Em compensação, e de repente, outro espetáculo irrompe dentro do espetáculo no extraordinário desempenho de Magali Biff em um solo longo, erudito e tragicômico sobre o tempo, teorias científicas, preconceitos teóricos, ilusões teológicas, e mais e mais. Uma das atrizes do ano desde já. Puzzle é, assim, uma maratona verbal de alto nível com a surpresa de convidados especiais a cada dia: cantores, músicos e escritores que se encaixam no clima geral. Brilhante anarquia-protesto artístico. Caricatura de um tempo de desengano-esperança que evoca frases do lendário humorista Barão de Itararé (Aparício Torelly): “Há alguma coisa no ar além dos aviões de carreira” e “O mundo está ficando louco, e eu também”. 

PUZZLE (D)

Sesc Vila Mariana. Teatro. Rua Pelotas, 141, tel. 5080-3000. 6ª e sáb., às 21 h; dom., às 18 h. R$ 12/ R$ 40. Até 8/3. 

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