Peças ganham um novo público com serviços de acessibilidade

Recursos de audiodescrição e interpretação em Libras escancaram as portas do teatro e dão acesso a deficientes visuais e auditivos

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colunista convidado
Por Leandro Nunes
Atualização:

“Para os surdos, não existem coisas como ‘enfiar o pé na jaca’ ou ‘encher linguiça’”, adianta a tradutora e intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras), Maísa Souza. “Metáforas e outras figuras de linguagem precisam ser explicadas já que essa língua é um outro idioma.” E de fato é. Reconhecida na Constituição desde 2002, Libras possui sintaxe e semântica próprias e maneiras distintas da Língua Portuguesa de construir frases e transmitir ideias por meio do movimento das mãos, braços e expressões faciais.

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O que Maísa faz desde 2013 vem ao encontro de uma demanda de escancarar as portas do teatro para que deficientes auditivos possam apreciar peças, espetáculos de dança, óperas e shows traduzidos na sua própria língua. “Eu comecei fazendo traduções em peças escolares, um teatro mais amador. Minha primeira peça profissional foi a comédia Casal TPM.”

Hoje, ela integra um projeto no Teatro Sérgio Cardoso que mantém uma programação com espaço reservado para esse público. E, no último sábado, 26 de setembro, o Dia Nacional do Surdo foi festejado em uma sessão especial com interpretação em Libras da peça Pulsões, de Dib Carneiro Neto. Com direção de Kika Freire, a obra fala de inclusão quando parte dos estudos da psiquiatra alagoana Nise da Silveira, que mudou a forma de tratar pacientes com esquizofrenia. “É uma peça muito poética. Foi preciso estudar o texto e compreender o trabalho da psiquiatra e entrar no clima proposto”, conta Maísa. 

Recursos de acessibilidade no espetáculo Pulsões. Na foto, a tradutora de Libras Maria Aparecida Cavalcante. FOTO:AMANDA PEBORELLI/ESTADÃO Foto: AMANDA PEBORELLI/ESTADÃO

Por ser uma linguagem bastante corporal, ela aponta um macete que auxilia o surdo a compreender o quê e qual personagem está falando. “Faço o que chamamos de incorporação. Copio alguma característica desse personagem, que pode ser um trejeito como ficar corcunda ou a forma de andar.”

Outro desafio surge logo após o intérprete estar pronto para traduzir. Onde colocar o sujeito na sala do espetáculo? Uma vez que os teatros não possuem e não foram construídos com um espaço reservado aos tradutores, que também auxiliam deficientes visuais. 

Diferente do cinema, no qual a legenda se localiza no canto inferior da tela, no teatro essa questão pede mais atenção, pois os surdos precisam acompanhar a cena e, ao mesmo tempo, a tradução do profissional. Sem falar que, em uma cena às escuras, o intérprete precisa estar visível.

Desafio da Mediação

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Atualmente, é possível acomodar em um mesmo espetáculo um público de surdos, que acompanha uma peça com tradução em Libras (Linguagem Brasileira de Sinais), e de deficientes visuais, conectados ao recurso de audiodescrição. Com toda essa variedade, o local em que os profissionais de acessibilidade se posicionam precisa ser estratégico. “Já vi colocarem o tradutor na escada de incêndio, por exemplo”, conta a tradutora de Libras Maísa Souza. No caso de um palco italiano, é comum dispor os surdos nas primeiras fileiras da plateia e na diagonal oposta ao tradutor, para facilitar a observação dos gestos e do que está acontecendo no palco. 

Para o público com deficiência visual, o trabalho de mediar ganha outra complexidade e cuidado no momento de transmissão. No Brasil, o Teatro Vivo foi pioneiro na ação. Entre 2005 e 2006, iniciou uma programação com recursos de audiodescrição: a plateia utiliza fones de ouvido e um equipamento conectado a um tradutor, que fica dentro de uma cabine nos fundos da plateia e de onde descreve, por meio da voz, as ações dos personagens e a ambientação. Após a empresa ser vendida para a Telefônica, o projeto não teve continuidade.

No Teatro Sergio Cardoso, quem representa essa frente é a audiodescritora Lívia Motta, que explica como foi traduzir o espetáculo Pulsões. “Após estudar o material e assistir à peça, faço um roteiro e transformo elementos visuais em palavras. Antes de começar, falamos algumas notas introdutórias para situar a plateia com informações sobre a sinopse, os personagens e a ambientação do palco. E, no final, o público pode subir no palco para tocar os objetos do cenário.” 

Com diferentes públicos dentro do teatro, o ideal é equilibrar – a plateia de deficientes visuais é preferencialmente acomodada nas poltronas do fundo, próximas à cabine, e os deficientes auditivos à frente. Para Samara Ferreira, coordenadora do núcleo responsável pelo projeto Terça Tem Teatro com tradução em Libras, na maioria das vezes essa organização pode ser acertada em conjunto com os artistas. “Aqui, a tradutora fica embaixo, na lateral, e com um foco de luz sobre ela. Se a peça é bem iluminada, conseguirmos aumentar a intensidade. Se for o contrário, baixamos a iluminação.” Mantida pelo Itaú Cultural, a ação começou em fevereiro desse ano e mensalmente oferece espetáculos com tradução para surdos. 

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Outro desafio de se mediar uma obra artística está em transmitir a informação sem sacrificar a subjetividade. “Se um personagem está nervoso”, explica Lívia, “descrevo seu comportamento: se o sujeito olha para os lados e se torce as mãos com ansiedade”. Ela conta que é preciso evitar palavras que restrinjam a compreensão. “Adjetivos como ‘bonito’, ‘feio’ e ‘belo’ não servem. É melhor dar pistas visuais que ampliem o entendimento.” 

Uma outra maneira de avançar e ampliar essa compreensão é levar para o palco, na figura do ator, a tradução em Libras. O trabalho conduzido pela atriz e professora de Libras Sabrina Caires, do grupo Rendeiros Contadores de Histórias, rendeu o espetáculo infantil Onça Que Espirra Não Come Carne, de Plínio Marcos. A peça faz sua última apresentação no dia 11 de outubro, no Teatro Solano Trindade, em Embu das Artes. “Nós misturamos falas e gestos para que todas as pessoas possam compreender como o tema da peça é político, pois fala de animais que lutam entre si para chegar ao poder. Trazer essa linguagem ajuda a refletir sobre a inclusão”. Agora, Sabrina quer arriscar mais ao colocar um surdo no palco. “Isso seria o máximo da inclusão!” 

Sobre incluir, Lívia afirma que a procura desse público por espetáculo tem aumentado nos últimos anos, o que ajuda a acabar com o preconceito, especialmente os mais “bobos”. “Quando comecei a trabalhar com cegos, pensei que não poderia falar ‘você viu isso, você viu aquilo?’, que eles se ofenderiam. Isso é uma besteira, eles nem ligam”, ri. 

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ITAÚ CULTURAL

O projeto Terça Tem Teatro apresenta peças com tradução para Libras. Neste mês serão, A Mulher do Trem, no dia 6; PPP@WLLMSHKSPR.BR no dia 13, Escalafobética do dia 20 e Cidade Vodu no dia 27; todos espetáculos sempre às 20h. Avenida Paulista, 149. Tel. 2168-1777. Grátis.

TUCA

A comédia que voltou para festejar os 50 anos de carreira de Antonio Fagundes tem sessões com Libras, legenda e audiodescrição, no último sábado de cada vez. A última será em 12/12, sempre às 21h30. Rua Monte Alegre, 1024 – Perdizes. Tel.: 3670-8455. R$ 80.

SERGIO CARDOSO

No próximo sábado, 3, haverá uma sessão do espetáculo infantil Mônica Mundi, às 18h30, com Libras e audiodescrição. As próximas datas serão divulgadas na página Ver Com Palavras no facebook. Rui Rui Barbosa, 153 – Bela Vista. Tel.: 3288-0136. Grátis.

THEATRO SÃO PEDRO

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Na programação de novembro as óperas O Homem dos Crocodilos e Édipo Rei estrearão com serviço de tradução em Libras nos dias 18, 20, 22, 25, 27 e 29. Rua Dr. Alburquerque Lins, 207. Tel.: 3661-6600

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