Na Moscou de Stalin, o seu longo governo de terror (1927-1953) impôs a um escritor ensinar comunismo a doentes mentais. Estamos na farsa política do romeno Matéi Visniec. Porque uma das faces do stalinismo é a de ter quase abolido a psicanálise. Havia apenas a psiquiatria médica, os remédios para os loucos completos. O resto é teatro. A URSS usou, e muito, o artifício psiquiátrico para encarcerar os dissidentes. Artistas, políticos, cientistas, homens do pensamento que saiam da linha do Comitê Central pagaram este preço. Ou os matavam, como fizeram com o encenador e teórico Vsevolod Meyerhold (1874-1940), um dos grandes do teatro ocidental, assassinado a tiros depois de prestar serviços à esperançosa revolução de 1917. Há uma vasta literatura sobre um sistema ditatorial imutável até a queda do Muro de Berlim, em 1989. Foram 70 anos de ironia ou loucura da história na expressão do ensaísta polonês Isaac Deutscher, biógrafo de Stalin e Trotski. O autor, Matéi Visniec, viveu só uma parte do pesadelo. Rapidamente exilou-se na França a exemplo de compatriotas como o dramaturgo Eugene Ionesco, o filósofo Emil Cioran, o historiador Mircea Eliade e, mais recentemente, o ensaísta e pesquisador teatral Georges Banu.
Visniec é frequentemente chamado de um novo Ionesco, um dos construtores do chamado Teatro do Absurdo. Há diferenças. Ionesco, no fundo, era um nostálgico da Romênia dos reis Carol e Miguel II derrubados pelos vendavais militares do século 20 e pelos comunistas. Sua sátira metafórica abarca toda crise do homem burguês/burocrata e as formas difusas de opressão. Matei é mais agressivo ideologicamente e mais experimental em termos de linguagem.
Na peça
A História do Comunismo Contada aos Doentes Mentais
, ele ataca abertamente o comunismo de Moscou que cerceou meia Europa com suas polícias: a KGB soviética, a Stasi na Alemanha Oriental e a romena Securitate. Quem se interessar por esta existência vigiada, dois exemplos: o filme
A Vida dos Outros
, com o magnífico ator Ulrich Mühe, e o livro
Stasilandia
, de Anna Funder, os dois ambientados na Berlim comunista.
A deformação da História segundo Visniec resulta em um espetáculo provocador, inteligente e estranhamente engraçado. Encenação de André Abujamra (autor ainda da trilha sonora) e Miguel Hernandez. O elenco vibrante, a começar pelo diretor e também ator Hernandez, é um coral com solos e duetos.
O espectador pode só ver uma comédia de malucos com um texto veloz e situações absurdas, tomando o termo pelo lado mais cotidiano. Divertida embora em linguagem cifrada, subtendidos, achados linguísticos que podem distrair a atenção. Stalin foi Napoleão de hospício que criou para milhões, sombras ao meio dia. O espetáculo, porém, ao pretender mais incorre na queixa generalizada, um cacoete que se disseminou no teatro. O programa, não assinado, em resumo diz o seguinte: "Se vivemos uma crise na moralidade pública, podemos perceber os reflexos na carência de representatividade política do homem contemporâneo".
A seguir são mencionadas as leis do mercado, a fragilidade das instituições, e como arremate, "a falência das utopias". Consequentemente, "o homem vagueia sem crenças definidas e sem caminhos que agreguem uma coletividade". Quase chegamos à anedota "Deus está morto, o mundo acabou e eu já não estou me sentindo muito bem". Emil Cioran é quem gosta destas coisas. Ele, militante de extrema direita antes de ser o filósofo do nada, da extinção. A melhor prova em contrário é o próprio texto de
A História do Comunismo Contada aos Doentes Mentais
. Desde os gregos, o teatro faz a sua parte e está muito bom. O teatro é a utopia.
O espetáculo provavelmente enfrentará a desinformação. Poucos conhecem Stalin e seus males. Pedaços do Muro de Berlim são até usados em "arte conceitual". Pode ser ceticismo crítico, mas possivelmente só uma minoria acompanha Vladimir Putin, o novo dono do Kremlin. Mas vamos nos animar. A Cia Anjos Pornográficos, responsável por esta loucura reveladora, começou em Portugal com artistas brasileiros, portugueses e cabo-verdianos. Poderá, quem sabe, estabelecer um vínculo com a nova dramaturgia portuguesa geralmente ignorada nos palcos brasileiros. Outro Muro a ser derrubado.