Matheus Nachtergaele e Renato Borghi se encontram no palco em fábula sobre o ofício do artista

Com 14 atores e músicos, tom libertário da Tropicália inspira musicalidade 'Molière'

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Por Leandro Nunes
Atualização:

O mundo da arte e suas rixas é tão – ou mais – interessante quanto as boas parcerias. A poesia de Arthur Rimbaud e Paul Verlaine, por exemplo, nunca foi a mesma, depois que os rapazes se conheceram, já na outra ponta, sobram boatos a respeito do ódio entre Mozart e o compositor Salieri.

No limite entre o choque e a fascinação, também estão nessa lista o pai da comédia francesa de todos os tempos e seu oposto trágico Jean Racine. Estreia nesta sexta, 20, no Teatro do Sesi, o ringue musical de Molière, com Matheus Nachtergaele e Renato Borghi, juntos no palco pela primeira vez. 

Trio. Élcio Nogueira Seixas interpreta Racine, Borghi vive o arcebispoe Matheus é Molière Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

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Na grande produção, o diretor Diego Fortes – que colhe o destaque de seu premiado O Grande Sucesso – foi convidado por Borghi para encenar a peça musical escrita pela mexicana Sabina Berman. “A autora criou uma fábula sobre a vida do artista a partir do conflito entre Molière e seu então aprendiz Racine”, explica. Na história o dramaturgo, interpretado por Nachtergaele, já tem o prestígio do Rei Luis XIV e habita a corte com suas comédias. A pedido do jovem Racine, Molière começa a treiná-lo até que o estilo épico do aprendiz começa a ameaçar o riso de seu mestre e sua posição de artista do rei, em um embate que remonta à própria essência do teatro representado na oposição das máscaras gregas tragicômicas. “Eles brigam para reafirmar seu gênero como mais nobre e preferido do rei”, conta Nachtergaele. “O que quer dizer ter seu trabalho patrocinado e sobreviver.” 

Quem se aproveita desse conflito entre os artistas é Borghi, na figura do arcebispo Péréfixe. “Ele é a entidade burocrática e hipócrita que quer censurar tudo, do mesmo jeito que hoje em dia”, afirma Borghi. 

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Imersos nessa situação em que a luta pelo próprio talento e a defesa do trabalho é o que garantirá as contas pagas, o espetáculo pretende elaborar, com leveza, questões sobre a nobreza de rir e chorar e o que é mais caro: a liberdade de criação ou se subordinar aos financiadores de uma obra. “A peça coloca os personagens para refletir sobre o que é possível ser e o quanto isso pode ser perigoso”, aponta Nachtergaele. 

Para ambientar a trama, o diretor apostou em uma montagem que não registrasse exatamente o século 17. “Esse texto poderia virar um teatro clássico, com cortinas vermelhas, mas percebemos que as questões trazidas ultrapassam essa época”, aponta Fortes. Desde o figurino às composições musicais, a peça quer ser um ringue de cores, músicas e a importância do artista no centro, sem coxias. 1.º round! 

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Quando o diretor Diego Fortes estreou O Grande Sucesso em São Paulo, não foi apenas o público comum que ficou de olho nele. Quando os atores Renato Borghi e Élcio Nogueira Seixas assistiram ao espetáculo, perceberam que a “mão subversiva” do diretor naquela peça sobre figurantes que esperavam a hora para entrar em cena, tinha tudo a ver com a dinâmica de Molière, que estreia nesta sexta, 20, no Teatro do Sesi. “Não queríamos um teatrão”, conta Borghi. “Mas algo que brincasse com as linguagens.”

Para Matheus Nachtergaele, a peça que reúne artistas de Minas, Rio, Curitiba e São Paulo é uma chance de relembrar a natureza do teatro. “Essa peça poderia se chamar ‘Racine’, ou ‘Péréfixe’. É um trabalho criado por todos, projetos cada vez mais raros.”

Parte dos músicos de O Grande Sucesso estão com o diretor na nova empreitada. “Algumas parcerias vêm e permanecem, o que nos ajudar a dar continuidade ao trabalho”, afirma o diretor que distingue a construção musical de Molière de seu trabalho anterior. “Em Grande Sucesso, tratava-se de um musical, já que as cenas paravam quando a música começava. Aqui, temos uma trilha incidental, que ambienta a cena”, justifica.

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Isso não significa que as fronteiras estejam totalmente delimitadas. O espaço dos músicos está aberto às intervenções da cena, e vice-versa. “Eles poderiam estar no fosso, mas no palco acabam reforçando essa liberdade”, indica Fortes sobre a ausência de coxias. E a referência à obra de Caetano Veloso e à Tropicália como guia. “Tem a ver com a subversão da época, dos grandes festivais”, diz o diretor.

A equipe numerosa e o ambiente de união quase estudantil entre os artistas não é só flores, pois vem de encontro à dura realidade da votação no STF – adiada – sobre a regulamentação do ofício, reconhecido na lei de 1978. “Artistas são como antenas, mais ou menos sinceras, de seu tempo”, afirma Nachtergaele. “Nesse sentido, a arte sempre revela o subjetivo de uma era.” Para Borghi, “tirar o pedigree” do artista é desvalorizar o seu trabalho. “Querem fazer de nós filhos do nada. Uma atitude que confunde artistas com empresários corruptos, os piratas da profissão.” No destino de Molière, o sucesso de sua comédia teve limite, quando estreou O Tartufo (1664), peça imediatamente censurada pelo clero por retratar um religioso hipócrita. “O que preocupa é quando a grana e o poder decidem o que o público deve ver”, acrescenta Nachtergaele.

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A distância natural entre o riso e a lágrima

A convivência de Molière e Racine estava fadada ao fim desde o início. Mesmo assim, com energias criativas aparentemente tão opostas, havia um ponto em comum entre eles, a fascinação pela natureza humana, tão obscura e cheia de ambiguidades. Na mão do mestre da comédia, defeitos e virtudes serviam para criticar a sociedade. Racine se voltava para as tragédias gregas e mergulhava nas mentes perversas e mórbidas de personagens clássicos. Eram diferentes, mas próximos, do riso e da lágrima.

MOLIÈRE. Teatro do Sesi. Av. Paulista, 1.313. Tel.: 3146-7000. 5ª, 6ª, sáb., 20h, dom., 19h. Estreia 6ª (20). Grátis. Até 29/7

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