Fernanda Montenegro revê sua antiga relação com Nelson Rodrigues no Festival de Curitiba

Aos 87 anos, quem leva Fernanda de volta ao palco e à estrada é Nelson Rodrigues. “A minha relação com ele não vem de agora, quando todos o glorificam”, justifica

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Por Maria Eugenia de Menezes
Atualização:

CURITIBA - Durante a abertura do Festival de Curitiba, diante de uma plateia composta majoritariamente por patrocinadores e convidados, Fernanda Montenegro foi breve ao falar de política. “Nós, do teatro, estamos acostumados às catacumbas. Eles passarão e nós sobreviveremos”, disse, ao final da leitura de Nelson Rodrigues por Ele Mesmo, obra com a qual abriu, dia 28, a 26.ª edição da mostra. 

Fernanda Montenegro no monólogo 'Nelson Rodrigues por Ele Mesmo' Foto: Annelize Tozzetto

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Em uma segunda apresentação da peça, porém – desta vez voltada exclusivamente a estudantes –, a grande dama do teatro brasileiro foi mais enfática em seus posicionamentos: Atacou a fragilidade da política cultura, ironizou o funcionamento da Lei Rouanet e relembrou os anos mais difíceis da ditadura militar. Ajudou, inclusive, a puxar os gritos de “Fora, Temer” do público. “Deixem-nos aqui, no submundo. Danem-se os políticos lá em cima. Considero Brasília um outro país, um país no qual não nos reconhecemos. São colonizadores.” 

Essa conversa com os alunos não estava prevista no convite que o festival fez a Fernanda. Mas foi sua exigência para aceitar participar. “Queria desmistificar essa aura de distância, essa impressão de que eu existo em um mundo à parte. Nós não somos separados. Eu não existo sem a plateia e é essencial que a gente se fale, sem essa história de quarta parede.” 

A ideia de dialogar com o público já pautava o último trabalho da atriz. Com esse formato, ela levou Viver Sem Tempos Mortos (2009), um retrato de Simone de Beauvoir, para a periferia de grandes cidades. Recebendo, ao fim de cada apresentação, os espectadores para um debate. “É um destino inescapável, sabe? Nessa idade, tenho convicção de que já estaria de bengala, doente em casa, se não fosse pelo teatro”, comenta. “Eu venho de uma família pobre, sou neta de imigrantes, não tenho curso superior. Tudo o que eu tenho – a minha formação, a minha família – foi o teatro que me deu.”

Aos 87 anos, quem leva Fernanda de volta ao palco e à estrada é Nelson Rodrigues. “A minha relação com ele não vem de agora, quando todos o glorificam”, justifica. “Mas de antes, quando era um proscrito. Pensei em trazê-lo nessa hora tão confusa que o Brasil está vivendo.” As peças de Nelson foram escritas em um contexto muito diferente do atual – entre 1939 e 1978, antes e durante a ditadura militar. Mas em um cenário de similar polarização política. “Naquela época, se o sujeito fosse de esquerda e escrevesse uma obra, era considerado automaticamente gênio”, recorda. Mesmo após a consagração de Vestido de Noiva, Nelson teve sua obra renegada, unanimemente. Para os conservadores, tratava-se de um imoral. Para os contestadores do regime, um reacionário.

Fernanda se lembra que foi Glauber Rocha, líder do cinema novo, quem propôs a sua reabilitação. E Leon Hirszman, proclamado comunista, o diretor escolhido para rodar A Falecida – filme protagonizado pela atriz. “Ao fazer esse gesto, Glauber passou por cima dos radicalismos. O que importa não é o homem. Não me interessa se Shakespeare era um puxa-saco da rainha. O que interessa é a obra. O que interessa no Nelson é a obra.”

Por ironia, o que a intérprete traz à cena não é nenhuma das peças do autor, mas as reflexões que ele teceu acerca de si mesmo, escritos confessionais nos quais se descortinam sua infância, as influências literárias, os posicionamentos estéticos e políticos. Posições quase sempre (como era do feitio rodriguiano) controversas. “Não planejei fazer esse espetáculo. Apenas comecei a ler e aquilo foi acontecendo. Algo em que ele se expunha, falava da crise ligada aos militares, tinha a coragem de mostrar isso e não esconder”, observa ela que, em breve, também assinará a direção de um quadro no Fantástico sobre o escritor maldito. 

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Sua maior contribuição ao teatro, acreditava Nelson, era a linguagem cênica. Uma dramaturgia que não buscava nunca o puro efeito literário. Nem se dava no lugar do coloquialismo. “Ele vai ao cerne da ação dramática. É raro o autor que não faz uma introdução ao tema. Nelson, não. Chamava isso de literatice. Só vai no nervo exposto. Conheci um único autor que fazia isso também: Harold Pinter. As peças dele não têm antes, só o momento.”

É difícil imaginar que Fernanda Montenegro possa ser uma chata. Mas, durante quase um ano, ela telefonou insistentemente atrás de Nelson Rodrigues. Queria porque queria uma peça para sua nova companhia, o Teatro dos Sete. E Nelson havia lhe dito que sim, que escreveria. Mas inventava desculpas a cada vez que o telefone tocava na redação do jornal Última Hora: “Muito trabalho, meu anjo. Muito trabalho”, respondia do outro lado da linha. Chegava a fingir ser outra pessoa: “Nelson? Não, minha filha. Aqui, quem fala é o Nestor”. 

Quando o caso já parecia perdido, o dramaturgo lhe entregou Beijo no Asfalto, uma peça sobre o “fracasso do amor”, como ele gostava de definir. Seria um estrondoso sucesso – ainda que interrompido, quase diariamente, por protestos dos espectadores. “O curioso é que falam tanto do reacionarismo do Nelson, mas ninguém nunca protestou contra isso em suas peças. Ninguém nunca se levantou e parou o espetáculo para dizer que ele era um cronista da direita. Protestavam por questões morais, gritavam ‘tarado’, era uma confusão”, relembra. Começaria aí, em 1960, uma relação estreita e profícua entre autor e intérprete. Para Fernanda, ele escreveria Toda Nudez Será Castigada, que acabou protagonizada por Cleyde Yáconis, e A Serpente – seu último texto, concebido após recuperar-se de um coma. Estiveram juntos ainda em A Morta Sem Espelho, primeira novela da TV brasileira – folhetim no qual a censura também cravou os dentes. “Marcado pelo estigma de suas posições políticas a vida toda, ele fez um teatro libertário, atravessado por essa brasilidade aloucada. Sabemos dizer quem é o francês, o inglês, o italiano. E nós, brasileiros?”, pergunta Fernanda. “Quem somos?”