Crítica: No palco, cenas de um dicionário amoroso

‘A Reunificação das Duas Coreias’ trata de desencontros e angústias

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Por Maria Eugenia de Menezes
Atualização:

O título A Reunificação das Duas Coreias poderia sugerir uma trama de viés geopolítico. Ou talvez uma revisão dos efeitos da Segunda Guerra. Mas não é nada disso. Foi para tratar eminentemente de amor – amor em seus diferentes estados e etapas – que o francês Jöel Pommerat escreveu essa peça em 2013. A inspiração evidente veio de Cenas de um Casamento, o filme terrível de Ingmar Bergman. Sua maneira de observar o lado escuro das afeições humanas, porém, passa ao largo dos desentendimentos de um único casal. Em 18 cenas independentes, com 48 personagens, desenha-se um microcosmo das relações.

A peça de Joel Pommerat Foto: CLAUDIA RIBEIRO/DIVULGAÇÃO

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Com direção de João Fonseca, a montagem traz homens e mulheres debatendo-se entre desencontros e angústias – tudo muito distante da já puída imagem da idealização romântica. Boa parte dos ideais gestados por escritores e pensadores do século 19 – o encontro de almas, a fusão de dois seres em um, o enamoramento como forma de realização e expansão da individualidade – já caiu por terra. Ainda que siga a alimentar fortemente a indústria do entretenimento, a temática amorosa foi há muito abandonada pela intelectualidade em benefício de assuntos mais ‘sérios’ e urgentes. Na década de 1970, Roland Barthes já falava sobre a “inatualidade” do amor. E é basicamente sobre esse pressuposto que concebeu o seu Fragmentos de um Discurso Amoroso. 

As cenas curtas de Pommerat aproximam-se do que Barthes construiu nessa sua obra. À semelhança da estrutura de Fragmentos..., a peça tem breves enunciados – Separação, Filhos, Espera – a anunciar situações dramáticas facilmente identificáveis. Para quem está na plateia, não é difícil se reconhecer em muitos dos conflitos levantados. O que impede A Reunificação das Duas Coreias de repetir algo já feito ou de soar senso comum é a onipresença do absurdo. Permanentemente, o trágico tangencia o humor. 

Por estarem ligeiramente fora de lugar, por desviarem-se do curso esperado das narrativas, as frases do dramaturgo soam como um retrato condensado do contemporâneo. Uma personagem pode dizer que o amor não existe e evocar meras reações químicas, sem estar imune a seus efeitos. É possível, comprovamos, que a afeição sobreviva à maior das adversidades – a ausência de memória. Como conceber um amor sem a dose de fabulação que lhe é inerente? É provável que uma relação acabe mesmo que os sentimentos permaneçam. Porque, às vezes, “o amor não basta”, diz a personagem vivida por Bianca Byington. Bianca e Letícia Isnard, aliás, se destacam nesse elenco de sete intérpretes e rendimento desigual. Como se ambas soubessem provocar no espectador o riso contido e nervoso que emana do texto. 

Trata-se da segunda obra do autor francês a merecer montagem no Brasil. A primeira foi Esta Criança, com a Companhia Brasileira de Teatro. Em São Paulo, também já foram vistas duas encenações estrangeiras de seus textos: Ça Ira e Cinderela estiveram presentes na mais recente edição da MITsp – Mostra Internacional de Teatro. Mais do que propriamente dramaturgo, Pommerat gosta de se definir como um “autor de espetáculos”. Cria seus títulos na sala de ensaios, com a participação dos atores de sua companhia.

Geralmente, dirige os próprios textos. O que indica sua predisposição a conceber linhas para a encenação enquanto escreve.  Mosaico de situações comezinhas e embaraçosas, A Reunificação das Duas Coreias pede uma montagem de viés igualmente irônico. Em grande medida, é esse o tom da versão de Fonseca. Mas a embalagem aparentemente simples requisitada pela escrita de Pommerat traz armadilhas não completamente superadas pelo diretor. Delicado é o balanço entre o ridículo e a compaixão exigido por essas breves histórias. Mas o conjunto padece com as trocas entre cenas, nem sempre bem-sucedidas. As canções que permeiam esses intervalos funcionariam, pretensamente, como respiros debochados – uma ambição que não se cumpre. Além disso, a destoar de uma apurada direção de movimento (essencial em um espetáculo com tantas e variadas cenas), há descuidos técnicos – como no caso da sonoplastia – que nublam o que vai à cena. 

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