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Cia. Cisne Negro celebra aniversário com espetáculo que homenageia Hulda Bittencourt

Companhia está há 40 anos no Brasil com 'H.U.L.D.A.'

Por Juliana Ravelli
Atualização:

Só mesmo com muita obstinação, beirando pura teimosia, é que se constrói uma carreira artística. Manter uma companhia privada por 40 anos no Brasil, então, é para fortes, como Hulda Bittencourt. A incansável criadora da Cisne Negro Cia. de Dança se transformou em musa do espetáculo que celebra as quatro décadas do grupo paulistano. H.U.L.D.A. estreia nesta sexta, 21, no Teatro Santander.

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Jorge Takla, que assina a direção, conta que admira a companhia há muito tempo e, nos últimos anos, tornou-se mais próximo de Hulda. Quando soube do aniversário, sugeriu que fizessem um espetáculo sobre a alma da Cisne Negro. “O que é essa força que faz com que uma companhia no Brasil resista tantos anos, arriscando, trazendo novidades? De onde vem essa força? Vem de uma pessoa que se chama Hulda”, diz o diretor. Segundo Takla, mais do que uma homenagem à fundadora da companhia, a obra é uma “reflexão poética sobre o que é fazer arte, sobre como manter essa conquista viva”.

Cada letra do nome de Hulda dá origem a uma palavra diferente: horizonte, união, liberdade, dança e amor. Elas guiam o espetáculo e surgem no palco como elementos cenográficos, criados por Nicolas Boni. Takla também gravou depoimentos de Hulda e de bailarinos. As gravações aparecem em meio à música composta por André Mehmari, que já havia trabalhado com a Cisne Negro. Os figurinos são de Fábio Namatame.

Rui Moreira e Dany Bittencourt – diretora artística da companhia e filha de Hulda – dividem a coreografia. “Quando Takla teve o insight da criação, a gente falou que seria um processo que pegaria muito da minha vida, família, do meu pai (Edmundo Bittencourt, morto em 2004). Pensei: ‘Será que vou conseguir transportar tudo isso para a coreografia? Acho que não vou conseguir sozinha’. Precisava ter ao meu lado alguém com quem me desse muito bem, como o Rui, que nasceu aqui dentro também”, diz Dany.

Rui chegou até Hulda no início dos anos 1980, por indicação de um professor. “Naquele momento, estava muito fresca a fama da Cisne Negro de acolher homens”, diz Rui. Fez um teste e recebeu o aval para fazer todas as aulas que desejasse. Nos intervalos, aprendeu a editar filmes de rolo com Edmundo Bittencourt. Com ele, também passou a desenvolver equipamentos de luz usados nos teatros em que dançava com a companhia. “A Cisne Negro é especial em minha história.” H.U.L.D.A. é a quarta criação de Rui para o grupo. Também coreografou Trama (2001), C/ Cordas (2005) e Calunga (2011).

A bailarina estará no palco na primeira semana da temporada. Foto: Nilton Fukuda/Estadão

Inspiração

Ana Botafogo, que também completa 40 anos de carreira em 2017, é outra grande figura que se uniu à empreitada. Participou de toda a criação do trabalho e estará no palco na primeira semana da temporada. A primeira-bailarina e diretora do Balé do Theatro Municipal do Rio (ao lado de Cecilia Kerche) dividirá o papel com Daniela Severian, que dançou na Cisne Negro e, por muitos anos, na Alemanha. Na obra, Ana e Daniela ora representam uma musa, ora a própria dança; em alguns momentos, personificam Hulda.

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“Essa homenagem é para a Hulda apaixonada, educadora e visionária que, por meio da dança, não só transformou vidas, como fez parte da história da cultura brasileira”, diz Ana. “Em uma época em que tudo é efêmero, a memória é curta e não se dá valor aos que já fizeram, homenageá-la é celebrar a importância de todos os que deixaram um legado para a dança, que dedicaram suas vidas para que essa arte tivesse o espaço que tem hoje.”

Desde os anos 1980, Ana dança como convidada da Cisne Negro. Com o grupo, fez turnê em Nova York, dançou ao lado do bailarino norte-americano Fernando Bujones e viajou por todo o interior paulista. “Sei como foi difícil chegar até aqui, como uma companhia independente e conseguir se manter por 40 anos no mercado, dando trabalho a tantos profissionais.” Para comemorar as suas quatro décadas de carreira, Ana planeja lançar em breve um livro escrito pelo próprio pai, o cirurgião Ernani Ernesto Fonseca. 

É a primeira vez que Takla faz o roteiro e dirige um espetáculo unicamente de dança. Afirma que aprendeu muito com todo o processo e com Hulda. “Ela tem uma determinação, uma força, uma vontade de viver e de continuar… Tenho 40 anos de carreira, Hulda tem 60. Ela continua com vontade de fazer mais coisas. Não tem nenhum momento de fraquejar, desistir ou cansar. Acho um exemplo de vida, porque eu fraquejo muito. Tem momentos em que quero desistir, que estou cansado, que acho que não sei mais o que tenho de expressar. Questiono quem é o público, o que as pessoas querem, o que tenho a dizer. Hulda não. Ela sempre tem coisas a dizer e a expressar”, diz o diretor.

Hulda está emocionada com o trabalho e com a celebração. Não só o grupo completa quatro décadas, mas a escola – administrada pela primogênita Giselle Bittencourt – também faz 60 anos. E se fosse para começar de novo, Hulda não pensaria duas vezes: “Não me arrependo de nada. Faria tudo de novo”.

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Tudo começou com os estudantes de pernas peludas

E com eles nasceu uma das marcas da cia: bailarinos preparados para dançar obras clássicas e contemporâneas. 

Há 40 anos, a escola de Hulda Bittencourt ficava na Rua dos Macunis, 520. Do outro lado do Rio Pinheiros, a Universidade de São Paulo (USP). Dali, da Escola de Educação Física, um grupo de rapazes saiu em busca de aulas de balé. “Chegaram de shorts, pernas peludas e tênis. Disseram que queriam dançar. Falei que não sabia trabalhar com homem, que estavam na porta errada. Perguntei: ‘Que dança vocês querem? Eu só ensino dança clássica’. E eles: ‘Mas é essa mesma que a gente quer aprender’”, conta Hulda.

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“Souberam que a dança trazia outro tipo de trabalho físico. Primeiro, achei que queriam namorar as bailarinas. Depois, vi que eram sérios e profissionais. Coloquei todos na barra, ensinei a base. Chamei coreógrafos importantes: Victor Navarro, Neide Rossi, Umberto Silva, Penha de Souza, Luis Arrieta e outros. Eles também se apaixonaram porque viram que os meninos davam conta. Aí surgiu aquela dança bem forte, com uma energia que contaminou as meninas e o público.” 

Assim, nasceu uma das marcas da Cisne Negro: bailarinos preparados para dançar obras clássicas e contemporâneas. O que o grupo faz há quatro décadas, agora, é regra em toda grande companhia do mundo.

Dois anos após a chegada dos estudantes da USP, escola e companhia se mudaram para o espaço que ocupam hoje na Rua das Tabocas, 55. O prédio – o primeiro da Vila Beatriz, segundo Dany Bittencourt – foi erguido após o engenheiro químico Edmundo Bittencourt, marido de Hulda, vender uma fábrica e alguns terrenos para investir no projeto de vida da mulher. O empreendimento vingou. Entre as conquistas, turnês pelos EUA, pela África, América do Sul e Europa, sempre com casas cheias.

A história da Cisne Negro é de constantes recomeços. Parte do sucesso se deve à perseverança de Hulda e à sua habilidade de agregar parcerias. Nesses anos todos, a companhia desenvolveu projetos sociais na capital e no interior; levou a dança para escolas e hospitais. Há 34 anos, põe em cena O Quebra-Nozes, espetáculo mais tradicional da cidade.

A escolha por não ter um coreógrafo residente fez com que a Cisne Negro fomentasse o desenvolvimento de jovens coreógrafos, como o próprio Rui Moreira. “O olhar da direção sempre foi de descobrir novos talentos. Daí a diversidade da companhia”, diz Dany. A qualidade de formadora está no DNA do grupo, talvez por ter surgido a partir da escola e ser liderado por Hulda, uma grande mestra preocupada com o ensino da dança. Ex-bailarinos da Cisne Negro estão espalhados por companhias do mundo todo.

Hoje, Hulda lamenta a inviabilidade de fazer turnês internacionais e a crise, que tem afastado o público. Mas sabe que é uma vencedora. “Me considero uma heroína.” Está habituada a superar as adversidades. A de agora não é a primeira nem será a última.

H.U.L.D.A. Teatro Santander Av. Pres. Juscelino Kubitschek, 2.041. Tel.: 4003-1022 Às quintas e sextas, 21h; sáb., 18h e 21h; dom., 16h e 19h. Ingressos de R$ 50 a R$ 160.Até 30/4

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