Bia Lessa estimula os sentidos com a instalação/peça ‘Grande Sertão: Veredas’

Artista oferece diversas leituras da rica obra de Guimarães Rosa, na instalação que se une à montagem

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Por Ubiratan Brasil
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Para a inauguração do Museu da Língua Portuguesa, em 2006, Bia Lessa criou uma exposição sobre o sertão de Guimarães Rosa. Foi um deslumbramento, mas também abriu uma nova possibilidade. “Quando montei a mostra, algumas questões se apresentavam – a principal delas era como utilizar imagens sem que o significado do sertão de Guimarães ficasse reduzido a um único lugar. A opção, na época, foi trabalhar apenas com palavras, pois a construção da linguagem representa a própria construção do indivíduo”, conta ela, artista múltipla (cineasta, diretora de teatro e ópera, curadora) que retorna agora ao infinito universo rosiano por novos caminhos: a cena mesclada com as artes visuais. Bia conduz o público na instalação/espetáculo Grande Sertão: Veredas, que estreia no sábado, 9, no Sesc Consolação. 

Trata-se de um passeio intenso por uma das principais obras da literatura mundial. A grosso modo, a peça acompanha a saga do jagunço Riobaldo (Caio Blat) ao atravessar o sertão para combater seu grande inimigo, Hermógenes (Leon Goes). Riobaldo é o homem atormentado tanto pela dúvida sobre a existência do demônio como pela paixão inconcebível por alguém que julga ser outro homem, Diadorim (Luíza Lemmertz).

Elenco. Os dez atores nãosaem de cena e ainda vivem elementos da natureza Foto: Hélvio Romero/Estadão

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Ciente do tamanho do desafio, Bia Lessa promoveu uma verdadeira imersão na obra que é considerada a matriz do romance brasileiro, cercando-se do pensamento de críticos ilustres assim como de um grupo de atores nada homogêneo, mas igualmente informado da necessidade de uma entrega total. “Desde maio, quando começamos a ensaiar, tentei me desligar de tudo, preocupando-me apenas com as palavras de Guimarães”, conta a atriz Luísa Arraes. “Faz três meses que acordo pensando em memorizar a poesia do texto e de como nós, atores, podemos oferecer algo a mais: a experiência sensorial do sertão”, completa Caio Blat.

É preciso aqui detalhar a forma engenhosa com que a encenadora preparou o espaço, que ocupa a área de convivência do Sesc. Ali, o público encontra uma estrutura tubular, que lembra uma gaiola: as cadeiras são colocadas em forma de U, onde, na região central, os atores permanecerão durante todo o espetáculo, cuja duração é de ininterruptas 2h40. 

“O sertão está dentro da gente, dizia Guimarães, uma verdade que norteou o trabalho de criação, no qual homens, animais e vegetais estabelecessem uma relação de diálogo sem que o ser humano se posicione como superior”, conta Bia. “Não estamos exatamente no sertão, mas em um espaço em que o pensamento ecológico prevalece e onde cabe o metafísico.”

Por conta disso, o público apreciará todo o elenco de dez atores não apenas vivendo seus papéis, mas também um pássaro ou uma pedra, incentivando a relação sensorial. Haverá, ainda, outro elemento original: cada espectador usará fones de ouvido que permitirão escutar separadamente a trilha sonora, as vozes dos atores, os efeitos sonoros e sons ambientes, levando-o a um nível inédito de interação com a dimensão sonora do espetáculo.

“São três camadas”, explica Bia. “A música composta por Egberto Gismonti permite que as pessoas tirem o pé do Brasil e vejam, diante de si, o universo. Os ruídos da natureza possibilitam ampliar os sentidos e, por fim, uma reunião de canções que todos conhecemos e que povoam nosso universo coletivo.”

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No início do processo, a encenadora convidou diversos estudiosos para trabalhar na adaptação do romance de Guimarães Rosa. Diante de tantas negativas por causa da magnitude da obra, Bia percebeu que não deveria fazer nenhum corte. Assim, as falas trazem com exatidão as palavras do autor. E, como o livro não tem divisões, Bia fez outra descoberta fundamental e não dividiu o espetáculo em cenas, o que justifica a permanência dos atores durante o tempo todo em cena. 

Foi um grande desafio para os artistas, grupo formado tanto por profissionais como iniciantes, vindos de várias regiões do País, uma pluralidade de sotaques que valoriza a riqueza léxica da obra rosiana. “A permanência no palco possibilita a mesma experiência de se ler a obra sem parar”, observa o ator Daniel Passi, que divide a cena também com Leonardo Miggiorin, Balbino de Paula, Elias de Castro, Lucas Oranmian e Clara Lessa.

Um dos trabalhos mais delicados é o de Luíza Lemmertz como Diadorim, mulher que, sob a aparência masculina, embaralha os sentimentos de Riobaldo. “Tenho um filho de dez meses, o que reforça meu feminismo justamente em que enceno um texto dominado por homens e no qual o feminino, sufocado, luta para escapar”, comenta ela, cuja introspecção foi decisiva para a delicada composição.

A encenadora. Com um dos 250 bonecos Foto: Hélvio Romero/Estadão

Uma interpretação necessária, pois o crítico Davi Arrigucci já demonstrou que o encontro entre o rústico Riobaldo e o delicado Diadorim, em Grande Sertão: Veredas, representa a transcendência a que tanto aspira o Brasil, ainda marcado por traços arcaicos e em estado bruto, para uma dimensão que abrande nossa “demonice”.

O espaço onde acontece a encenação abrigará também uma instalação, onde 250 bonecos de feltro com tamanho humano compõem uma imagem permanente: a cena da morte de Diadorim como um presépio, passível da participação do espectador, que pode ocupar o lugar da personagem. “É o sertão metafísico”, conta Bia.

GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Sesc Consolação. R. Dr. Vila Nova, 245.  Espetáculo. 5ª a sáb., 20h30. Dom., 18h30. R$ 40. Até 22/10 Instalação. 2ª a 4ª, 11h/21h30. 5ª e 6ª, 11h/19h30. Sáb., 10h30/19h. Grátis. Até 22/10

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A PEÇA, POR SILVIANO SANTIAGO

“Grande Sertão: Veredas se expande como espetáculo teatral que libera – qual alegoria rigorosa da nossa contemporaneidade − o modo como os movimentos desenvolvimentistas sem preocupação social e humana não recobrem a nação como um todo. Pelo contrário. O esforço positivo da modernização é localizado, centrado e privilegia. Nas margens, cria enclaves de párias – bairros miseráveis, favelas, prisões, manicômios, etc. −, onde violentas forças antagônicas se defrontam e se afirmam pela ferocidade da sobrevivência a qualquer custo, acirrando a irascibilidade do controle e do mando. Viver é perigoso.”

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