Balagan guerreia por uma saga de grandes narrativas

‘Cabras’ assinala a duradoura parceria entre a escrita de Luís Alberto de Abreu e a companhia dirigida por Maria Thais

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colunista convidado
Por Leandro Nunes
Atualização:

Se, na Bíblia, o cordeiro figura um animal pacífico e obediente, as cabras são tidas como rebeldes e teimosas. Nas palavras do poeta João Cabral de Melo Neto, pela falta de modos, o destino do bicho é à margem. “Quem encontrou cabra que fosse animal de sociedade?”, a diretora Maria Thais recita o trecho de Poema(s) de Cabra.

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A metáfora apropriada pela Cia Teatro Balagan se deslocou para o alto do nome do espetáculo Cabras – Cabeças que Voam, Cabeças que Rolam, que estreia nesta sexta-feira, 22, no Centro Cultural São Paulo, apenas para convidados. “Somos nós. Um bando de resistentes e, de um jeito ou de outro, nunca um animal de sociedade”, completa Maria. 

A montagem parte de um conjunto de 20 contos curtos, que orbitam em torno da temática da guerra. Com assinatura de Luís Alberto de Abreu, o texto não trata a guerra do ponto de vista do extermínio, mas desvela a batalha como um motor cultural da humanidade, explica. “Na nossa cultura, tentam apaziguar o conflito. Não é para fazer isso! A guerra tem sentido na vida, na biologia”, diz. “A literatura se fundou nas guerras, as religiões. E a cultura civilizada tende a esconder. Acabar com a guerra é acabar com o ser humano.”

Cena de Cabras – Cabeças que Voam, Cabeças que Rolam, direção de Maria Thais Foto: ALEX SILVA/ESTADAO

No Brasil, não faltam manifestações artísticas na tradição que são herdeiras diretas da guerra. “A capoeira e a congada são batalhas, os evangélicos e a maneira como vivem a religião no corpo também é uma guerra”, explica Maria. Para o cenógrafo Marcio Medida, “a guerra seria um estado de confronto consigo mesmo com o outro e o território.” Desses exemplos, a diretora organizou ao lado de Abreu uma dramaturgia situada no cangaço brasileiro e dividida em quatro partes – Guerra, Guerra-Fé, Guerra-Festa e Fogo-Paz-Fogo –, que tratam dos conflitos familiares, da fé coletiva e o embate da religião com o corpo, a guerra representada nos festejos e, por fim, os períodos de trégua entre batalhas.

A forma de narrar escolhida se convencionou como uma arquitetura textual semelhante à estrutura clássica dos trípticos, conjuntos de molduras criados pela cultura cristã que trazem três pinturas formando uma única imagem. “Na peça, são quatro partes com cinco narrativas”, pontua Abreu. “Um prólogo, três partes e a última que fecha”, completa Maria.

O gosto e o método por tais construções é uma das chamas que alimentam a relação do dramaturgo com a companhia. Segundo ele, seu apreço pelas narrativas encontra eco no trabalho da diretora e do cenógrafo, desde Tauromaquia (2003), passando por Západ (2007) e Recusa (2009), trabalhos nos quais assinou os textos. “Gostamos de histórias arquitetadas, com começo, meio e fim”, diz o dramaturgo. “Na Balagan, é muito mais uma saga, é como se as histórias aqui fossem anteriores à própria linguagem. Portanto, uma linguagem mais pura.”

Luís Alberto de Abreu, Maria Thais e Márcio Medina Foto: ALEX SILVA/ESTADAO

Para Maria, a pesquisa principal da companhia é compreender a narração e que não implica em meramente representar o homem. “Não vamos contar a história do cangaço, mas a filosofia desse universo. Não é uma reprodução, mas o fascínio pelo mito”, afirma. “Lampião, por exemplo, não é mais uma figura histórica. O cangaço também não.” Abreu acrescenta que a tendência de todas as coisas é virar mito, como o cangaceiro. “O mundo está na dependência do tempo. As coisas reais estão acontecendo e a função da narrativa não é reproduzir essa coisa real, mas transformá-la em mito. Depois de morto e decapitado, Lampião é um sujeito que não pertence mais a um único tempo. Ele é de todos.”

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E o ato do governo da época de desfilar as cabeças de Lampião e seus soldados, para amedrontar possíveis revoltas, acabou por elevar os “cabras rebeldes” à posição de mito. “Eles só queriam ter o direito de circular, eram nômades”, conta Maria. Quanto mais o Estado mostrava as cabeças, mais eles viraram mito.” 

Por outro lado, a diretora ressalta que, entre todas as guerras, a política está fora do alcance do espetáculo. “Podem olhar e dizer: é típico demais ou não é político suficiente.” Sua intenção, ela conta, é cultivar um teatro tecido minuciosamente. “Eu não tenho que fazer discurso político. Nossa guerra é poética. Por mais que a gente possa discursar sobre, a resposta está no trabalho feito. É a fé na artesania.” 

Cabras 3 - versão 3 from Fernando Bergamini on Vimeo.

CABRAS. Centro Cultural São Paulo. Anexo da sala Adoniran Barbosa. Rua Vergueiro, 1.000, tel. 3397-4002. Sex. e sáb., 21h; dom., 20h. R$ 10/R$ 20. Até 13/3.

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