Crítica: Peça 'Vaga Carne' confirma Grace Passô como grande intérprete

Atriz tem personalidade exuberante, com evidente domínio técnico

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Por Maria Eugenia de Menezes
Atualização:

O universo de um artista se dá a conhecer não apenas pelo que é dito – ou representado em sua obra – mas também por aquilo que esse criador escolhe calar. Silêncios estrategicamente selecionados. Em Vaga Carne, espetáculo que Grace Passô encena no Sesc Pompeia, as questões identitárias não entram em discussão. Não há menções à sua biografia. Não se debate gênero nem raça. Mas do que é que se fala, afinal?

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Em primeiro plano, está a história de uma voz. Como se essa pudesse ser um ente independente, com existência própria, a circular pelo mundo. A seu bel prazer, essa voz rebelde encarna nos corpos que quiser. Toma o lugar de animais e objetos. Até que um dia, depois de muito vagar, encontra uma mulher e nela resolve se deter um pouco mais. Lida-se, portanto, com o pressuposto de que vozes e corpos existem separadamente. Mas sempre na iminência do encontro.

Vaga Carne, que estreou no Festival de Curitiba do ano passado e já cumpriu temporada em outras capitais, chega a São Paulo mais madura e depurada. Trata-se do primeiro trabalho solo de Grace Passô, revelada em 2005, pelo espetáculo Por Elise, obra que notabilizou o grupo Espanca!, de Belo Horizonte. Aqui, a criação coletiva dá espaço a um monólogo – assinado, interpretado e dirigido por uma mesma pessoa. Mas não, necessariamente, a um trabalho solitário. Na ficha técnica, partilham a criação colaboradores de diversas áreas: do cinema, da dança, das ciências sociais.

Atriz. Voz domina espetáculo Foto: Lucas Ávila/Divulgação

São muitos, realmente, os caminhos necessários para discorrer sobre coisas que não podem ser simplesmente ditas. Precisam, primeiro, existir. Nessa sinopse improvável – a história de uma voz rebelde e errante –, colocam-se as sementes dessa conversa penosa (impossível?) que a intérprete pretende travar com o espectador. Se está a tratar de preconceito e racismo, sem que se resvale nesse tema. O que se insinua é o perigo. Como corremos o risco de interpretações equivocadas quando lidamos com imagens preconcebidas e primeiras impressões. Da mesma maneira, machismo e questões de gênero atravessam a montagem – ainda que esses termos, ou seus correlatos, não sejam sequer mencionados. Há uma mulher negra e uma voz que não é dela. Existem palavras jorrando em fluxo contínuo. Mas são importantes essas palavras? Que mágica é essa, que permite dizer sem dizer?

Esse feito não se relaciona só com o texto. Tem a ver com a imagem dessa artista parada diante de uma plateia. Uma atriz de personalidade exuberante, com evidente domínio técnico. E também, assumindo-se que há tanto de indizível e impreciso nessa peça, com algo que poderíamos chamar de uma qualidade da sua sensibilidade. A maneira como sabe existir em cena, colocando-se como uma tela, a ser preenchida pelas ideias e referências de cada espectador.

O pacto de partilha da encenação com a plateia é uma constante no trabalho de Grace. Instado a se manifestar, o público entra no jogo da verborragia. Está convidado a debruçar-se sobre o estereótipo da mulher negra. Recebe o convite para vasculhar o que existe para além dessa superfície. O que lhe vai por dentro, como vê e é vista essa personagem. Nessa dissociação de corpo e discurso, desvelam-se camadas sobrepostas. Ainda que isso não tenha como resultado uma suposta profundidade ou mensagem final.

Há muito deixamos de crer na existência de um real, neutro, que virá a ser nomeado pelas palavras. A virada linguística do século 20 alterou os rumos da filosofia e das ciências humanas. Veio embasar a psicanálise. Passamos a lidar com a ideia de que a constituição do sujeito passa pela linguagem, de que os limites da linguagem são também os limites da percepção. Aqui, tudo se põe de pernas para o ar.

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Muito ambicionado desde Marcel Duchamp – e poucas vezes alcançado – o estranhamento é um componente poderoso em uma obra de arte: capaz de nos levar a suspeitar da regra, a questionar a normalidade. Por estranharmos, estamos dispostos a olhar de novo, olhar melhor e ver o mundo de outra forma. Os limites entre e o eu e o outro estão rompidos nesse espetáculo, se dissolveram no ar. Subjetivo e objetivo se confundem. Singularidade e indivíduo se tornam conceitos a ser reinventados.VAGA CARNE Sesc Pompeia. Rua Clélia, 93. Tel.: 3871-7700. 5ª a sáb., 21h; dom. e na 4ª (dia 25/1), 19h. R$ 7,50 a R$ 25. Até 5/2. 

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