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Análise: 'Nelson Rodrigues por Ele Mesmo', com Fernanda Montenegro, revela austeridade exuberante

Atriz levou à abertura do 26º Festival de Curitiba o monólogo 'Nelson Rodrigues por Ele Mesmo’

Por Maria Eugenia de Menezes
Atualização:

CURITIBA -A visão de um grande ator em cena é sempre um fato extraordinário. Lá estão o mistério, a qualidade inexplicável de sua presença. Mas acompanhar Fernanda Montenegro na leitura de Nelson Rodrigues por Ele Mesmo tem algo que transcende esse natural fascínio pelo talento da intérprete. Existe uma pureza de descoberta nessa obra tão simples. Conhecemos Fernanda. Conhecemos Nelson. Já vimos a atriz interpretar as personagens do autor. Mas como poderíamos adivinhar o resultado desse encontro? 

Fernanda Montenegro no monólogo 'Nelson Rodrigues por Ele Mesmo' Foto: Annelize Tozzetto

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Um tom antiespetacular tem pautado o teatro que se faz no Brasil nesses tempos de crise. Não é só austeridade econômica, mas um princípio estético a contaminar criações de diferentes matizes e origens. Uma cadeira e uma mesa de escritório servem de ambientação a esse universo que Fernanda movimenta em cena. A peça é uma leitura, feita com uma brochura nas mãos e óculos no rosto. Assim, sem nenhum anteparo, somos guiados ao “interior” do maior autor do teatro brasileiro. Vislumbramos aquilo que lhe ia para além das polêmicas e das frases de efeito. Encontramos as mortes que o atravessaram, a fome, as doenças, os delírios de pavor. 

A partir do livro homônimo organizado pela filha de Nelson, Sônia Rodrigues, Fernanda costurou a dramaturgia. Assina também a direção. Tudo muito contido, muito austero. E, paradoxalmente, exuberante. Em especial, nas pontuais situações nas quais usa a música. Nelson tem 4 anos de idade. De repente, a vizinha coloca no gramofone a valsa da opereta O Conde de Luxemburgo. Ele vive com a família em Aldeia Campista, subúrbio do Rio. Ao som da composição, sua mãe deixa os afazeres domésticos para rodopiar sozinha na cozinha. Nesses momentos, recorda, “ela se dilacerava de felicidade”.

Descobrir o homem por trás do mito não é fácil. Mais cômodo continuar atado a verdades antigas sobre o artista, repetindo a pecha de reacionário. Sua excentricidade, por vezes, se impõe – mesmo se formos fiéis às palavras que escreveu. Nelson era o personagem de si mesmo. Mas Fernanda, com perícia, vai abrindo brechas. Traz o cronista extraordinário. Delineia, sem negar contradições e pecados, a imagem de um homem que nunca aceitou a submissão de um indivíduo a um sistema político – qualquer que fosse. “Entre o pão e a liberdade, eu fico com a liberdade”, dizia. 

Das memórias do anjo pornográfico, emerge mais do que uma biografia. Surge a atmosfera de um Brasil que persiste em suas atrocidades, revela-se a nostalgia de delicadezas que não existem mais. Ali, naquele rosário de lembranças, encontramos a raiz da transcendência de seus personagens, etéreos mesmo em meio à miséria material. Temos pistas da violência de suas paixões, da ironia feroz, do apego ao folhetim. A certeza de que a vida moldou o seu teatro de obsessões. 

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