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'A Floresta Que Anda' expõe as vísceras da contemporaneidade

Christiane Jatahy se apropria de 'Macbeth', de Shakespeare, para abordar conflitos sociais e políticos dos dias atuais

Por Daniel Schenker
Atualização:

RIO - Em dado momento de A Floresta Que Anda – novo trabalho de Christiane Jatahy em cartaz até dia 29 no Espaço Sesc, no Rio –, um peixe tem suas vísceras retiradas. É possível associar esse ato com a atitude da diretora em relação aos textos, na medida em que parece dissecá-los, operar sobre eles. Foi assim com Senhorita Julia, de August Strindberg, base da encenação de Julia, As Três Irmãs, de Anton Chekhov, que rendeu o díptico (peça/filme) E Se Elas Fossem Para Moscou?, e, agora, Macbeth, de William Shakespeare, que norteia A Floresta Que Anda, parte final da trilogia formada pelos espetáculos citados. A maneira de se apropriar dos textos, porém, diverge. “Julia é uma adaptação da obra de Strindberg para os dias de hoje. E Se Elas Fossem Para Moscou?, uma reescritura da peça de Chekhov. A Floresta Que Anda, uma composição sobre Macbeth”, compara Jatahy.

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Ao contrário das outras montagens, A Floresta... confronta o público, de modo mais contundente, com o rompimento da noção tradicional de personagem e a transmissão de uma história linear. “Fala-se muito pouco durante a sessão, mas quase tudo o que se diz é texto de Shakespeare”, afirma Jatahy. Única atriz em cena em todas as apresentações (cada uma se complementa com participações de artistas distintos), Julia Bernat interpreta Lady Macbeth, mas por um recorte que valoriza o crescente enlouquecimento decorrente da sucessão de mortes com que se envolve ao lado do marido, Macbeth, na busca desenfreada pelo poder. “Ela tende a ser vista como a maior responsável pelos assassinatos, quando, na verdade, incentiva Macbeth apenas uma vez. Daí em diante, ele não consegue parar. E é ela que se suicida, evidenciando a culpa que sente. Não significa, contudo, que eu queira isentá-la dos crimes”, analisa Jatahy.

A cada sessão, um ator diferente é convidado para se misturar ao público e representar brevemente a figura de Macbeth. “Não me interessa pensar quem é Macbeth, e sim o que é Macbeth. Por isso, não há um mesmo ator simbolizando o personagem. As escolhas é que determinam que alguém se torne Macbeth”, opina Jatahy, trazendo à tona a relevância do comprometimento de cada um com as próprias ações no mundo. Não por acaso, a diretora procura estimular a plateia a estabelecer conexão ativa com o trabalho. Para tanto, cria uma ambientação de vernissage. Os espectadores transitam por uma videoinstalação e realizam suas opções (quanto tempo observar os filmes exibidos, sentar ou permanecer de pé, ir ou não ao bar inserido no espaço cênico para comer e beber, conversar ou não com a atriz). Dialogam mais livremente com a obra, como costuma acontecer diante de uma exposição de artes plásticas. “Julia Bernat é a única atriz em meio a convidados. Mas talvez o protagonista desse trabalho seja o espectador. A floresta do título é o público”, declara Jatahy.

Nas telas, a plateia se depara com entrevistas com vítimas das guerras urbanas imperantes no contexto atual – Michelle, sobrinha do pedreiro Amarildo, Igor, integrante das manifestações contra o governo de 2013, Prosper, imigrante do Congo que teve a família assassinada, e Ismael, participante do movimento de acampamento de famílias desapropriadas.

“Há certas regras para a seleção dos entrevistados. Devem ser pessoas que estejam vivenciando um fato no presente. E priorizamos os jovens porque lançamos reflexão sobre o futuro”, justifica Jatahy, que planeja dirigir um documentário com os entrevistados, daqui a dez anos. Nas cidades onde A Floresta... desembarcar, a diretora quer incluir novas entrevistas. Ainda que, antes da estreia, tenha sido mostrado como processo na programação da última edição do Tempo_Festival, o trabalho seguirá em constante transformação. Está confirmado na próxima edição do festival Cena Contemporânea, de Brasília. E há negociações adiantadas com o Sesc para temporada em São Paulo.

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