Zé Nogueira e Arthur Dutra lançam CD e ultrapassam barreira do som erudito

Álbum 'Encontros' tem peças de Jobim e Anouar Brahem

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Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
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Guinga, o grande mestre, escreveu as palavras definitivas sobre o duo formado pelo saxofonista Zé Nogueira e o vibrafonista Arthur Dutra: “As teclas paralelas do vibrafone se encontrarão no infinito, onde haverá um saxofone esperando por elas. Nesse encontro, a música corrige a matemática”. Quod erat demonstratum, Nogueira e Dutra provam que as retas paralelas não estão condenadas à solidão eterna. Pelo menos não no CD Encontros (Som Livre), em que o duo toca ao lado de Guinga e outros convidados especiais – o baixista Bruno Aguiar, o percussionista Marcos Suzano e a cantora Lorrah Cortesi.

Trata-se de um projeto instrumental sofisticado, sem concessões. Um dos compositores escolhidos é o tunisiano Anouar Brahem, exímio instrumentista associado ao oud, o cordofone oriental de som delicado. Dele, a dupla selecionou a peça Dance with Waves, gravada no álbum The Astounding Eyes of Rita de Brahem, um dos músicos de maior destaque do selo alemão ECM. A exemplo de Zé Nogueira, já tocou em várias trilhas de cinema, entre elas uma do premiado compositor francês de origem libanesa Gabriel Yared (a do filme Hanna K., do grego Costa-Gavras, de 1983).

O duo formado pelo vibrafonista Arthur Dutra e pelo saxofonista Zé Nogueira Foto: Felipe Lima|Divulgação

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Em entrevista ao Caderno 2, por telefone, Zé Nogueira, que começou sua carreira há mais de 40 anos, conta que cresceu ouvindo os discos da ECM, fundada pelo produtor Manfred Eicher em 1969. O slogan criado por Eicher define seu propósito: “O som mais bonito depois do silêncio”. De tanto ouvir o sax soprano de Jan Garbarek, outra estrela da ECM, Zé Nogueira, oito anos mais moço, decidiu que seguiria pelo mesmo caminho – ele é um dos poucos músicos brasileiros que aceitaram o desafio de tocar sax soprano, instrumento transpositor que exige do intérprete muito mais que habilidade. “Fiquei impressionado com sua maneira de tocar ao ouvir o disco que fez com Egberto Gismonti e Charlie Haden” (Your Song, de 1981).

Mas o Brasil mudou e hoje prevalece um discurso nacionalista que beira a xenofobia. Já não há mais a cooperação transnacional da época em que Milton Nascimento gravou com Wayne Shorter (Native Dancer, 1975). “No Brasil, não se tem clareza de raciocínio, e uma prova disso foi a fusão, felizmente desfeita, do Ministério da Educação com o da Cultura, uma pedrada na nossa cabeça”, diz Zé Nogueira, decepcionado com a falta de sensibilidade das autoridades da área para projetos como o do disco Encontros, feito para ouvintes universalistas. “O que buscamos tem a ver com o Anouar, com o Garbarek, uma preocupação de tocar a alma das pessoas, de produzir uma música sem alarde, delicada.” Faltou dizer: sem a estridência que caracteriza boa parte da produção musical no Brasil contemporâneo.

O saxofonista, que também atua como produtor cultural, assumiu no passado a curadoria de importantes festivais de jazz. Considera arbitrária a divisão por gêneros, lembrando que a Europa é menos conservadora com relação à influência do jazz – e tanto Brahem como Garbarek dividem essa visão musical cosmopolita. De modo semelhante, Zé Nogueira e Arthur Dutra são por formação músicos multidisciplinares sem preconceitos musicais. O primeiro, filho de pianista, estudou música no Berklee College of Music. Dutra, formado em filosofia, fez doutorado na França e, por acreditar numa existência multidimensional, cita o pré-socrático Empédocles logo na primeira faixa do CD, Jogo de Espelhos, nona parte de Encontro, longa peça composta por ele da qual escolheu quatro fragmentos para o CD.

Os outros compositores selecionados para o disco – Villa-Lobos, Tom Jobim, Guinga – falam por si. As peças, juntas, formam quase uma suíte, à qual o duo Nogueira e Dutra deu vigorosa organicidade.

Nogueira tem certeza de que somos seres multissensoriais, Acredita, de fato, em sinestesia, na estimulação de um sentido pelo outro. Uma pessoa com capacidade sinestésica logo vai perceber que os tons musicais do duo correspondem às cores de uma paisagem. Isso porque Nogueira é também (bom) fotógrafo, embora não se considere um autor. “Gosto de fotografar como hobby, especialmente a natureza.” Já no campo musical, a autoria é relativa, observa. Embora não tenha gravado uma só composição sua entre as 11 incluídas no CD Encontros, Nogueira assume a autoria ao tocar do seu “jeito” uma peça de outro músico. De qualquer modo, ele já compôs algumas trilhas para o cinema, entre elas a do documentário Paulo Moura – Alma Brasileira (2013), de Eduardo Escorel, sobre o saxofonista, clarinetista e arranjador paulista, morto em 2010.

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Imagem lírica registrada pelo músico Zé Nogueira, que não se considera fotógrafo Foto:  

Como Paulo Moura, grande intérprete de Chico Buarque, Nogueira começou sua carreira sob o signo de sua música, participando da primeira montagem do musical Gota d’Água (1975), aos 20 anos. “Imagine, começar numa produção com direção musical de Dori Caymmi.” De fato, não é para qualquer um. Foi para Zé Nogueira, que só cresceu, desde a sua estreia.

ARTHUR DUTRA E ZÉ NOGUEIRA

‘Encontros’(Som Livre; R$ 29,00)