Rio de Janeiro perde patrimônios de sua cultura com o fechamento do Semente e Gafieira Estudantina

Violência e desordem urbana afastaram público e locais levaram os espaços a fecharem as portas

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Por Roberta Pennafort
Atualização:

RIO - A comemoração dos 90 anos da Gafieira Estudantina Musical, em 2018, não terá casais a rodopiar no velho piso de madeira. O silêncio também vai marcar os 20 anos do Bar Semente, a se completar na mesma época. Patrimônios culturais do centro do Rio, as duas casas, a primeira, templo da dança de salão, de frente para a Praça Tiradentes, a segunda, palco da Lapa dedicado ao melhor da música instrumental brasileira, do samba e do choro, anunciaram o encerramento de suas trajetórias de sucesso nas últimas semanas.

Aline Brufato, dona do Semente Foto: WILTON JUNIOR/ESTADAO

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O motivo é o mesmo: a queda de público, em decorrência do aumento da violência e da desordem pública na região e da crise financeira, e a consequente dificuldade para manter as contas em dia. Enquanto a tradicional gafieira deve mais de R$ 4 milhões à Ordem Terceira do Carmo, proprietária do imóvel que ocupa há 39 anos, e que a despejou do prédio na segunda-feira passada, o Semente, precursor do movimento de recuperação da degradada Lapa, viu seu movimento cair entre 30% e 40% do ano passado para cá, e fechou para que o prejuízo não aumente.

“Tomar essa decisão é muito difícil. Fazer música como a gente faz é caro, e decidi parar de perder dinheiro. O entorno não ajuda, embora a Lapa seja fantástica, comparada a Nova Orleans, a Alfama (bairro de Lisboa), e tenha uma constelação de palcos”, desabafa Aline Brufato, desde 2004 à frente do Semente. Ela conta que desde a Olimpíada de 2016, que excluiu a Lapa, viu minguar o número de frequentadores. Os eventos públicos se concentraram na Praça Mauá, do outro lado do centro, que concentrou os investimentos.

“A casa era bem gerida, temos pouquíssimas dívidas. Botei dinheiro meu nos últimos meses, mas não tive nenhum lucro. Fechei a operação diária, com dois shows de quinta a sábado, e demiti 15 funcionários. Não tem como funcionar com esgoto na porta, com pessoas fazendo os Arcos, um monumento do século 16, de banheiro público, a rua cheia de ambulante, sem limpeza pública, com depósito de bebidas vendendo a cachaça a R$ 1. Já fiz várias reuniões com o poder público. Estou desesperançosa. Já desisti de acreditar num salvador”.

Testemunha da transformação da Lapa – do abandono à glória, com 100 mil pessoas circulando por fim de semana, chegando ao descaso atual –, Aline chegou a ver a casa quase vazia. O cenário contrasta com o de noites memoráveis em que Chico Buarque, João Bosco, Ney Matogrosso, Dave Matthews e muitos outros fãs do Semente deram canjas animadas.

“Passei 20 anos tocando lá e não acredito que seja o fim. Construímos algo sólido. Estou indignado com o descaso com a Lapa e o Rio, não dá para aceitar. As pessoas estão perdendo o hábito de sair de noite, o que é difícil de recuperar”, diz o violonista Zé Paulo Becker, que vinha fixo nas noites de segunda-feira e é apenas um dos expoentes de uma geração que despontou do Semente.

No dia 18 de novembro, ele irá se apresentar com o grupo Semente Choro Jazz, formado no bar, no Blue Note do Rio – uma nova experiência para a marca Semente fora da Lapa. Antes disso, no próximo dia 28, as portas da casa da Evaristo da Veiga, colada aos Arcos, serão reabertas para um show pontual de Fred Martins.

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Teresa Cristina e seu Grupo Semente começaram lá, na primeira casa, vizinha à atual. Yamandu Costa se encontrou ao chegar do Sul, o violinista Nicolas Krassik, ao vir da França. “O Semente foi um divisor de águas, um lugar pequeno e informal que recebeu toda a geração de músicos que nasceu nos anos 1980 ou antes. Um grande laboratório musical. É difícil enxergar a importância disso agora, mas a história vai mostrar”, acredita Yamandu.

A história do bar será contada num documentário filmado há seis anos pela jornalista e frequentadora Patricia Terra – agora com final incerto. Ela tem imagens valiosas que atestam o papel do Semente como ponto de encontro frutífero para músicos, e também registros das presenças ilustres; o bar como um clube, mas sem ser excludente. “No início, não tinha nem público, eram os músicos ouvindo uns aos outros. O filme vai mostrar a eloquência dessa música, dali eles saíram para todos os continentes”, lembra Patricia.

O ocaso da Estudantina também abalou frequentadores e artistas, como a cantora Alcione. Ela foi pega de surpresa pela má notícia. “A gafieira é algo que só o Brasil tem, não pode acabar”, lamenta. Inconformado com o despejo, o diretor artístico da casa, Paulinho da Estudantina, vai pedir à prefeitura do Rio que ceda o Sambódromo para um show que angarie fundos para a liquidação da dívida.

Fachada da Gafieira Estudantina Musical Foto: WILTON JUNIOR/ESTADAO

Conseguimos o apoio de Maria Bethânia, Caetano Veloso, João Bosco, Fagner e Anitta, que aprendeu a dançar lá, aos dez anos. Temos que conseguir reabrir. Mas o prefeito é evangélico, não quer nem saber”, diz Paulinho, referindo-se a Marcelo Crivella (PRB), bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus. O diretor artístico admite: o aluguel não é pago desde 2004. “Não conseguimos, boa parte do público é da terceira idade e parou de sair de casa. Precisamos nos organizar para pagar”.

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A prefeitura considera o imóvel de utilidade pública desde 2012, mas não o desapropriou. Segundo a Ordem Terceira do Carmo, a Estudantina não tentou negociar os atrasados. “Querem manter a gafieira às custas do proprietário? Alguém tem que pagar. Só de contas de água a dívida é de R$ 80 mil. O valor total devido chega a R$ 4.329.000. Tentamos dialogar e só entramos na Justiça em 2009”, diz o secretário da-geral da Ordem, Armindo Diniz. “O despejo deveria ter sido há muito tempo, eles não cumpriram o acordo firmado.”

Adornado com fotografias do Rio antigo, o belo salão ficou conhecido no Brasil por servir de cenário de novelas de Glória Perez, madrinha da casa, na TV Globo – o último capítulo de “A Força do querer”, exibido sexta-feira, teve cenas feitas lá. Na véspera, foi realizado à porta do sobrado um protesto dançante, para chamar a atenção para o caso, com a presença do coreógrafo Carlinhos de Jesus e casais de dançarinos. Graças à gravação agendada do folhetim, a Estudantina teve uma pequena sobrevida. Na segunda, o mobiliário já estava na calçada.

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