Pianista venezuelana Gabriela Montero toca com a Osesp e critica projeto musical de seu país

Artista fala sobre concertos em SP e ataca: 'O Sistema se tornou um instrumento de propaganda'

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Por Redação
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Pianista e compositora, a venezuelana Gabriela Montero adicionou desde cedo à sua personalidade musical o gosto pela improvisação. Não é uma característica comum no mundo da música clássica. Assim como são raros os artistas que assumem claramente atitudes políticas. Contrária ao governo de seu país, ela não poupa nem mesmo dois símbolos culturais venezuelanos: o Sistema, extenso projeto de educação musical, e seu líder, o maestro Gustavo Dudamel. “O Sistema e seus líderes se venderam ao chavismo em troca de financiamento, em troca de dinheiro. É assustador e irresponsável fazer a propaganda de um regime que devastou um país”, afirma.

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Gabriela Montero é uma das principais pianistas de sua geração, parceira de lendas como a argentina Martha Argerich e presença constante ao lado de grandes orquestras mundo afora. Está no Brasil para três concertos com a Osesp, desta quinta-feira, dia 28, até sábado, 30, na Sala São Paulo. Vai interpretar o Concerto de Grieg, a mesma peça que tocará nas apresentações que fará com o grupo em agosto, em Londres e em Lucerna, na Suíça, com regência de Marin Alsop. “Ela mudou o panorama do que as mulheres representam na música clássica. Essa turnê, nesse sentido, tem outro significado para mim, é falar do que significa ser uma mulher, e uma mulher latina, nesse meio.”

A pianista conversou no início da tarde de quarta-feira, dia 27, com o Estado. Falou do repertório que vai interpretar, do gosto pela improvisação. E da maneira como vê a situação da Venezuela. Apesar do voto popular, considera o atual regime uma ditadura macabra, que fez com que ela abandonasse o país em 2010, optando pelo autoexílio nos Estados Unidos e escrevendo uma peça chamada Ex-Patria, escrita para piano e orquestra, que tem interpretado em concertos em todo o mundo desde essa época. 

Na mesma esteira, reforça a crítica com relação ao Sistema, projeto que espalhou orquestras pela Venezuela, relacionando ensino musical e inclusão social. E cita o pesquisador inglês Geoff Baker, que em um livro recente, El Sistema: Orquestrando a Juventude Venezuelana, definiu o projeto como um “programa populista, mais preocupado em confirmar o status quo social e cultural do que estimular o pensamento crítico por meio do trabalho com a música”. Para Baker, o projeto estimula ainda um “modelo de tirania”.

Não é uma posição hegemônica. Simon Rattle, diretor da Filarmônica de Berlim, já se referiu ao Sistema como “o futuro da música clássica”. Não é o único, e a lista inclui nomes estelares como o italiano Claudio Abbado, que chegou a cogitar instalar na Itália projeto semelhantes. O próprio Dudamel se defende, dizendo que o Sistema não é um projeto político, mas, sim artístico, o que o desobriga a tecer comentários sobre a situação do país. O foco, disse ele ao Estado em sua última passagem pelo Brasil, está acima de tudo na música e no papel que ela pode desenvolver na vida dos jovens. Mas Gabriela não concorda. “Há um momento em que você se deve perguntar: qual o preço que se paga pelo silêncio?”, questiona. “E, ao fazer isso, de que lado você se coloca moralmente?”

Na entrevista concedida ao Estado, a pianista Gabriela Montero, que toca desta quinta, 28, a sábado, 30, com a Osesp, define sua personalidade musical como “instintiva” e comenta a situação política de seu país - e o papel que a música tem desempenhado.

Diálogo. 'O que importa é se você fala com as pessoas por meio de sua arte' Foto: Tiago Queiroz|Estadão

Você vai interpretar o Concerto de Grieg. Como se aproxima da peça?

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Eu toco este concerto desde que tenho 10 anos de idade. Como com qualquer peça, tento entrar no mundo do compositor, seu mundo emocional, o que o levou a compor e a maneira como resolveu contar determinada história. Acho que o Concerto de Grieg é uma obra subestimada. Tem uma beleza dramática incrível, uma tristeza profunda. Traz as cores do país do compositor (Noruega), esse calor nórdico que é tão diferente do latino, mas ainda assim forte, como se houvesse a todo instante uma ameaça de tempestade como pano de fundo. É um dos concertos mais bonitos.

Além de intérprete, você é compositora e se dedica também ao trabalho de improvisação. Isso interfere no modo como você vê uma obra como essa?

Acho que sim. Quanto mais você sabe sobre algo, maior a capacidade de revelar seus segredos. Minha forma de aproximação da música é instintiva, é uma linguagem, uma conversa, um diálogo no qual está se falando sempre da condição humana. Quando toco esse repertório, entendo melhor por que ele foi composto, de certa forma. Como compositor, você sabe o que quer dizer. E torce para que o intérprete e o público entendam. 

A diversidade de repertório foi uma opção deliberada, assim como o gosto pelo improviso, ou seja, por uma relação diferente com o instrumento?

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Algo assim seria intelectual demais para mim (risos). Eu tinha um ano e meio quando comecei a mexer com o piano. A música sempre fez parte de minha natureza. Não venho de uma família musical, mas nasci assim. E tudo o que aconteceu desde essa época aconteceu porque é parte da minha natureza. Tocar, compor, improvisar, é assim que me relaciono com a música, é como o meu cérebro funciona. 

Você sente que o mercado da música entende essa proposta?

É engraçado. Vivemos no século 21, mas o que faço é algo que esteve vivo nos séculos 16, 17, 18 e 19. No fundo, eu sou a antiquada nessa história (risos). É incrível que me vejam como uma artista tão diferente. Essa multiplicidade era a definição do artista do século 19. Estou presa na época errada. O problema é que o mercado e os puristas precisam colocar você em uma caixa específica, e eu tenho que ser colocada em três. Mas, no final, o que importa é se você fala com as pessoas por meio de sua arte. 

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Sua primeira obra, Ex-Patria, trata da situação política da Venezuela. Quando você decidiu que precisaria tratar desse assunto em seu trabalho como artista?

Eu escrevi a peça porque queria falar desse tema. Ela é um cavalo de Troia que carrega a mensagem da Venezuela. Comecei a falar publicamente sobre isso em 2010 e, em 2011, pensei: minha primeira peça precisa ser sobre isso. As pessoas nem sempre reagem com empatia a uma história política, mas reagem às histórias humanas. E a música é um veículo para isso. Decidi investir meu tempo, dinheiro, e passei a correr riscos ao fazer uma afirmação política e musical como essa. Eu estava pensando nas 19.336 vítimas de assassinatos na Venezuela em 2011, quando escrevi. Esta é uma peça viva hoje porque ela precisa estar e as pessoas precisam ouvi-la. Ela te sufoca, te destrói, te faz sentir o que a Venezuela sente. Espero que um dia ela seja apenas uma memória ruim. No entanto, a situação só tem piorado, desde essa época. É uma crise humanitária catastrófica. Não estou falando de política, mas de vida humana. Caracas é a capital mais perigosa do mundo, com 28 mil assassinatos todos os anos. A Venezuela é hoje um país devastado economicamente, moralmente a vida não vale nada. 

Você tem uma posição crítica quanto ao Sistema. O que lhe incomoda? O método ou a relação do projeto com o contexto político que o cerca?

O problema é que o Sistema e seus líderes se venderam ao chavismo em troca de financiamento, em troca de dinheiro. O projeto existe há décadas e sempre foi patrocinado pelos governos. Mas nunca havia exercido uma função de propaganda. A diferença é que antes tínhamos governos, bons ou ruins, agora temos uma ditadura. E ela comprou o Sistema de forma inteligente, de forma que não pode mais funcionar de maneira independente. É importante levar a música às crianças, eu acredito muito nisso. O que é assustador e irresponsável é fazer a propaganda de um regime que devastou um país, o nosso país, em troca de dinheiro. Há um momento em que você deve se perguntar: qual o preço real que se paga pelo silêncio? E, ao fazer isso, de que lado você se coloca moralmente? Há muitas crianças, pais e professores maravilhosos no Sistema, mas há um lado apodrecido. E para o bem das pessoas boas tem que haver uma reavaliação sobre o que acontece lá dentro e uma crítica clara e aberta ao fato de ele ter se tornado uma ferramenta de propaganda.  O que está apodrecido?

A política se misturou ao dia a dia do projeto. Recebo sempre mensagens de membros do Sistema me relatando injustiças. Eu nunca pedi para estar nesse papel de porta-voz dessas pessoas. Seria mais fácil eu apenas tocar concertos, receber meus aplausos, sem ter que falar de morte, de corrupção, de injustiças. Mas não posso virar as costas. O maestro Gustavo Dudamel afirma que o Sistema não é um projeto político e que a arte não deve se misturar com essas questões. Dudamel pode dizer quanto quiser que não é uma pessoa política ou que o projeto não é político. Mas uma coisa é o que você diz e outra, o que você faz. Se você rege a orquestra duas vezes nas Nações Unidas na presença de Hugo Chávez, apresentado por Delcy Rodríguez, ministra das Relações Exteriores e uma das figuras mais macabras do regime, como símbolo dos valores do governo, você fez política.GABRIELA MONTERO E OSESP Sala São Paulo. Pça. Julio Prestes, s/nº, tel. 3223-3966. 5ª (28) e 6ª (29), 21h; sáb. (30), 16h30. De R$ 42 a R$ 194