Omara revisita seu disco clássico 'Magia Negra', dos anos 1950

Diva cubana se apresenta em São Paulo neste sábado

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Por Jotabê Medeiros
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Aos 83 anos, a cantora cubana Omara Portuondo detesta que lhe falem de duas coisas: sua idade e a possibilidade de se aposentar. "A música para mim é um tipo de rendição, uma coisa especial", disse ela anteontem, falando ao Estado por telefone, de um hotel em Porto Alegre. Omara está em turnê pelo País mostrando Magia Negra - Black Magic, um disco que gravou em 1957, aos 26 anos. O show desembarca amanhã, sábado, no Teatro Bradesco, em São Paulo. Biscoito finíssimo, Magia Negra foi gravado com o maestro, compositor e arranjador cubano Julio Gutierrez e contém canções como Caravan, de Duke Ellington; Andalucia, de Ernesto Lecuona; Que Emoción, de Orlando de La Rosa; Adiós, de Enric Madriguera; e Ya no Me Quieres, de Maria Grever. Omara o está refazendo no palco pela primeira vez em sua carreira, com um quarteto que conta, entre seus integrantes, com o pianista Rolando Luna, o garoto que hoje toca no Buena Vista Social Club o que o mestre Ruben Gonzalez tocava.

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"Nunca penso em me aposentar. Gosto do trabalho, gosto da proximidade com o público. Me estimula muito, me faz viva", disse a veterana cantora, um dos patrimônios históricos da música de Cuba. Ela falou das circunstâncias de gravação de Magia Negra, no auge das orquestras e dos clubes noturnos em Cuba, e dos seus projetos para o futuro.

Magia Negra evoca um período dourado da música cubana. A música-título é uma composição de Harold Arlen e Johnny Mercer, de 1942, e foi gravada primeiramente pela orquestra de Glenn Miller. A interpretação exuberante de Omara, com um tanto de juvenil, acenava para com uma nova possibilidade para os standards americanos.

A voz ritualística de Omara perpassa uma profusão de gêneros, como bolero, mambo, son, trova, rumba e outras. Filha de negro e branca, mãe espanhola que a incentivou na carreira artística, Omara foi enormemente influenciada pela cubana María Teresa Vera (1895-1965). Mas também ouvia pelo rádio a música que vinha dos Estados Unidos. “Quando eu era menina, não tinha eletricidade em casa, então a gente ouvia rádio de pilha. Costumavam transmitir concertos do Carnegie Hall pelo rádio, e a gente pegava isso em Cuba. Eu me lembro de ter ouvido uma cantora extraordinária chamada Marian Anderson. Quando estive no Carnegie Hall com o Buena Vista, vi uma foto dela lá, era uma negra estupenda”, lembrou, em 2012.

Omara Portuondo tinha começado sua carreira como bailarina na Cuba pré-revolucionária. Dançava no night club Tropicana quando foi levada pela irmã, Haydée, para integrar o quarteto vocal feminino Las D’Aida (onde ficou por 15 anos), que acabou se tornando uma atração popular em Havana. Foi nessa época que ela ganhou o apelido de “Namorada do Fílin", por ter aprimorado sua técnica no chamado "feeling", transmutação do bolero popularizado por cantoras como Doris de la Torre, Elena Burke e Rene Barios nos anos 1950.

"Eu cantava no Hotel Nacional naquele tempo, no Cuarteto D’Aida. Conhecia todos os músicos da época, todos os grandes maestros. E todos eles me diziam que eu devia gravar um disco. Eu não acreditava neles, e quando vi estava gravando com eles. Nem me dei conta. Mas eu nunca excursionei com esse álbum, é a primeira vez", relembrou Omara, falando ao Estado por telefone, na quarta-feira.

Quem chamou para si a responsabilidade de gravar seu primeiro disco foi o maestro Julio Gutierrez, com sua orquestra. O selo da época era o venezuelano Velvet. Em 2007, Magia Negra foi relançado e Omara não estava nem sabendo disso também. "Nunca soube desse disco, até agora. Achei que seria bom cantar novas versões de suas músicas num show, porque os números musicais são bons, são de primeira linha", ela contou.

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Omara é uma das últimas grandes divas de uma música de grande requinte musical, e que ela domina inteiramente em todas suas facetas. Por exemplo: o son cubano, que mescla os elementos harmônicos europeus com elementos rítmicos africanos, tem 14 tipos distintos. As diferenças entre os diferentes estilos explicam-se pelos variados acentos. No son montuno, há uma alternância entre o vocal principal e o coro. No bolero-son, “o tempo é mais lírico, intimista, sentimental”, como explica o maestro Juan de Marco González.

Essa riqueza e versatilidade da música cubana nunca foi efetivamente fechada ao mundo, apesar do bloqueio revolucionário. Nos anos 40, Dizzie Gillespie começou a tocar jazz com percussão afro-cubana, o que parecia uma invenção americana. Mas fora um cubano, Mário Bauzá, um dos maiores músicos cubanos da História, que começou, na orquestra de Chick Webb, em 1933, a fazer aquilo que nos Estados Unidos acabou se chamando de afro-cuban jazz. 

Omara fez o próprio blend desses gêneros, a partir de sua própria experiência mestiça. Ela só veio pela primeira vez ao Brasil nos anos 1990, quando os cubanos de sua geração estavam gravando discos sob a batuta do britânico Nick Gold. "Não me interessa falar do tempo perdido. Gosto de falar da vida em movimento", diz. 

Ela manteve desde sempre uma ligação muito forte com a música do País. Fã de Chico Buarque (com quem chegou a gravar em Cuba) e Bethânia, gravou em 2004 uma faixa com Carlinhos Brown no disco Flor de Amor (2004). Em 2008, fez um disco e um DVD com Maria Bethânia, Omara Portuondo e Maria Bethânia, um grande sucesso.

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Omara contou que está trabalhando com música para um balé e também para um filme, mas não deu muitos detalhes. Disse que sempre quis voltar a trabalhar com a dança, porque em seu tempo “não havia balés negros” e as possibilidades que surgiram hoje.

Entre os novos talentos da música, Omara elogiou a cantora espanhola Concha Buika, que disse que é "muito boa", e foi ao programa de Danilo Gentili há dois dias, onde comeu pão de queijo (uma das coisas do Brasil que mais ama). “Estão dizendo que o Buena Vista vai acabar. Mas a música cubana não tem fim”, ela afirmou, no programa de TV.

MAGIA NEGRA Teatro Bradesco. R. Turiassu, 2.100, 3º piso, tel. 3670-4100 (Shopping Bourbon Pompeia). R$ 45 a R$ 360. Sábado (30), 21 h.

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Anos 1950 foram playground sonoro que ecoa até hoje A música em Cuba tem uma espécie de glaciação dividindo-a em duas: antes de 1959 e depois. Em 1959, a Revolução Cubana derrubou o ditador Fulgêncio Batista e trouxe a utopia socialista à Ilha. Mas, em contrapartida, acabou com uma espécie de playground mundial. Antes de Fidel, na euforia turística, funcionava um laboratório em tempo integral de fusões e invenções. Nos cassinos, clubes, hotéis, bares, havia uma usina de música e de instrumentistas – entre eles, verdadeiros soberanos do ritmo, como Benny Moré (cantor e bandleader que morreu em 1963) e Bola di Nieve. Nenhum instrumentista ficava sem ocupação. A rumba misturava flamenco e música africana; o danzón, exclusivamente cubano, desdobrou-se no son, que deu na salsa; surgiu a guaracha (um tipo de son com letras satíricas); e finalmente o feeling (ou fílin). Com a revolução, a música típica do país ficou num limbo, isolada. Só veio a ser redescoberta nos anos 90, após o estrondoso sucesso internacional do grupo Buena Vista Social Club.

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