'Loki?', clássico de Arnaldo Baptista, completa 40 anos

Após Mutantes, músico mergulhou no isolamento e novos sons

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Por Carlos Eduardo Oliveira
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BELO HORIZONTE - Corria 1974 quando o rock, mesmo sem viver momentos mais prolíficos, mostrava sua força. Com dois petardos cada um no mesmo ano, Deep Purple e o então calouro Kiss não estavam para brincadeiras. Os Rolling Stones juravam amor ao ofício (com It’s Only Rock'n'Roll), David Bowie reinventava-se em Diamond Dogs, o Queen cravava um discaço (Sheer Heart Atack), o metal afiava as garras (Judas Priest, com Rocka Rolla) e mesmo o prog rock, com Genesis e Yes, adiava com dignidade o atirar da toalha. O Brasil ainda respirava o tsunami de Secos & Molhados no ano anterior quando Gita, de Raul Seixas, e A Tábua de Esmeralda, do então Jorge Ben, falaram alto nas paradas de sucesso. Em meio a essa efervescência, sozinho, enfurnado num sítio no alto da Cantareira (zona norte de São Paulo), um sujeito cabeludo que já experimentara fama e sucesso, faz do piano seu placebo para não sucumbir ao inferno astral e às (muitas) drogas. Então com 26 anos, já músico tarimbado, Arnaldo Dias Baptista, fundador dos lendários Mutantes, não tinha mais banda, nem mulher - Rita Lee, cantora do grupo e sua esposa, deixara-o. Também quase não tinha mais amigos e, artisticamente falando, estava falido na praça.Loki?, o mais-que-antológico trabalho que emergiu desse abismo, completa 40 anos em 2014 como um dos melhores registro de rock brasileiro em todos os tempos. Detalhe: sem ter nenhuma guitarra. E regado a samba, funk, bossa nova, MPB, pitadas de música clássica e muito boogie woogie, com Arnaldo, pianista exímio, martelando o instrumento sem dó. Melancólico, raivoso, introspectivo, lírico ao extremo e, ao mesmo tempo, carregando (não na forma) a fúria de quem tomara diversos ‘mata-leões’ da vida, sua música é veículo para Arnaldo despir-se e cortar da própria carne, em letras brilhantes. Como brincou Tom Zé, em recente texto, revisando o monólito: “É só bateria, piano e voz? Parece uma dúzia de assassinos. Música? Nunca mais faço uma". Produtor da então gravadora Philips (depois Polygram, hoje Universal Music), o mestre Roberto Menescal entrou em uma reunião de engravatados da companhia para mostrar a fita master das gravações. Silêncio absoluto, até alguém perguntar: "Você quer mesmo lançar isso?". Ele disse: “Quero". "Na ocasião, ninguém queria pegar aquele trabalho. Todos sabiam que ele estava cheio de problemas, achavam que estava muito louco. Pensei comigo: ‘Vou pegar a produção e ver no que vai dar’. Foi também uma forma de dar algum apoio a ele”, lembra Menescal. Ele tomou a ponte aérea Rio-São Paulo, resgatou Arnaldo da Cantareira e as sessões começaram no estúdio Eldorado. Mas a barra ainda pesava. "A carga emocional dele era grande. Às vezes, ele dizia ‘não tô aguentando' e parávamos tudo". Contas feitas, ao final, Menescal animou-se com o resultado. "Ele fez o disco dele, não o disco que os Mutantes fariam. Isso o valorizou muito." Baterista dos Mutantes e muito amigo do músico, Dinho Leme atendeu o convite de Arnaldo. Mas estranhou o material. "Cheguei achando que faríamos o som que a gente fazia na época, mas não era nada disso", conta. “Mesmo sabendo da genialidade dele, da qual eu era fã, foi surpresa ver que era algo mais brasileiro, meio bossa nova". Por conta disso, rolaram até desentendimentos. “Eu e o Liminha (baixista) fazíamos um take, e ele dizia que já estava bom. Mas a gente achava que podia melhorar. Ele não cedia. Como músicos, ficamos chateados. Mais tarde, vi que ele estava certo ao optar pela espontaneidade."

Zen. Em sua casa, em Belo Horizonte, Arnaldo fala do antológico trabalho Foto: Washington Alves/Estadão

 

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Atualmente, Arnaldo e a atual mulher e fiel escudeira, Lucinha Barbosa, dividem-se entre o sítio em Juiz de Fora (MG) e o apartamento decorado com quadros de sua autoria no frisson da Savassi, bairro boêmio na capital mineira. "O Loki? foi importantíssimo na minha vida. Eu precisava saber se podia ter uma carreira solo sem guitarras e sem Mutantes. Me permiti muita experimentação em função da minha solidão. Mas não esperava que fosse dar tão certo", diz, deslizando a palma da mão sobre os tigres estampados em sua camisa. “Consegui me expressar musicalmente por meio de coisas que gostava. Sempre curti samba-canção, que me lembrava do meu avô, e de ouvir a bossa nova do Zimbo Trio."

A alquimia deu certo, mas o tempero, ele não nega, veio da dor. "Me sentia abandonado. Mesmo tendo um lado totalmente independente da Rita (Lee). De certa forma, até havia uma distância entre nós. Ela me cansava um pouco, por não entender totalmente a música, no sentido mais clássico. Mas essa distância não ficou patente no disco."

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