Livro revela as memórias de Chet Baker

Chega às livrarias brasileiras mais um pedaço do espelho quebrado que foi Chet Baker, o livro Memórias Perdidas, que reúne textos do trompetista morto em 1988

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

Belo e doido como James Dean, voraz como Rimbaud, cool como Scott Fitzgerald, genial como Matisse, esfarrapado como Sid Vicious. Era o trompetista de jazz Chet Baker (1929-1988), cujo retrato estilhaçado só é conhecido em pedaços sem encaixes por seus admiradores, ao longo dos tempos. No dia 27, chega às livrarias brasileiras mais um pedaço do espelho quebrado que foi Chet Baker, o livro Memórias Perdidas (Jorge Zahar Editor, 120 páginas, R$ 17). Tradução brasileira de As Though I Had Wings: The Lost Memoir, publicado em 1997 pela St. Martin´s Griffin, de Nova York, é uma reunião de pequenos apontamentos e notas do trompetista, escritos pelo músico ao longo da vida, em um pequeno diário, e recolhidos pela ex-mulher Carol. As notas cobrem um período que vai de 1946, quando Chet começou a servir o Exército em Fort Lewis, em Washington, até o seu exílio europeu, em 1963, quando passou algum tempo em Barcelona. "Ele escrevia mal, mas com clareza, sem erros", conta o tradutor brasileiro do livro, o jornalista e crítico de jazz Luiz Orlando Carneiro. "Repetia um pouco as frases, mas essas notas refletem um pouco daquilo que ele foi, uma espécie de Dr. Jekyll e Mr. Hyde", diz. Como Dr. Jekyll, o médico, Chet Baker foi um grande bálsamo musical. Seu trabalho com Gerry Mulligan e Charlie Parker foi inacreditável. O talento e as inovações, que tiveram eco até sobre a bossa nova, são indiscutíveis. "Parece-me que a maioria das pessoas só se impressiona com três coisas", escreveu Chet. "A rapidez com que se pode tocar, a altura que se pode atingir e o volume do som produzido", continuou. "Acho isso um tanto exasperante, mas agora, mais experiente, vejo que provavelmente menos de 2% do público sabe realmente ouvir." Para Baker, aquelas anotações pareciam ter um sentido um tanto quanto terapêutico, já que era sua ligação mais forte com a realidade. Ele usa a escrita como um vínculo com a sanidade e também dá pistas sobre como chegou a ser um dos maiores fenômenos do jazz em todos os tempos. Aos 13 anos, por exemplo, ganhou um trompete do pai e lembra que frustou inteiramente a família - o pai era fã do prodígio Bix Beiderbecke (1903-1931) e lhe parecia que o filho não chegaria aos pés do ídolo. "Logo comecei a tirar do instrumento um som razoável e a aprender a tocá-lo em aulas na escola, mas tinha muita dificuldade em aprender a ler música", revela. "É que eu dependia inteiramente do meu ouvido, o que me criava problemas com o líder da banda, Mr. Kay." Conforme evolui em seu trato com o instrumento, evolui também no seu juízo sobre a música em geral, e Chet Baker não se limitava ao jazz. "Quando digo ouvir, quero dizer seguir um instrumentista através de suas idéias e ser capaz de entender essas idéias em relação com as progressões harmônicas, se elas são completamente modernas", escreveu. "O dixie é diferente - é mais fácil de seguir, e o rock é ainda mais simples do que o dixie, com a exceção da música de uns poucos realmente bons músicos de rock (ou suas variações), como Herbie Hancock, John Scofield, Mike e Randy Brecker." Sobre seus inúmeros casos e casamentos, Chet Baker conta histórias mirabolantes. Sherry, por exemplo, surgiu quando ele tinha uns 20 anos. Mas ficou grávida, ele arrumou um aborto e sumiu. Charlaine era um furacão - uma vez fizeram sexo nove vezes em três horas, ele contabiliza. Ela demonstrava entusiasmo igual com outro sujeito, Chet descobriu depois, antes de se casarem. Carol, a moça que recolheu as anotações, passou o diabo com a polícia para livrar a cara de Chet. Algumas de suas ex-mulheres ele conheceu numa noite e em dois dias estava casado. O problema era a parcela Mr. Hyde, o monstro, de Chet Baker. Nos seus relatos, ele mostra como era capaz de todos os truques para conseguir a maldita heroína, na qual foi viciado e que usou ininterruptamente entre 1949 e 1969. Foi preso diversas vezes. "Em alguns momentos, tive dificuldades com as gírias de drogados que ele usava, tive de recorrer a um dicionário de junkies na internet", conta o tradutor. Há relatos inacreditáveis. Vejam esse, por exemplo: "A polícia apareceu quatro dias depois. Na hora em que adentraram a casa, vi que estava frito. Eles não tinham nenhuma evidência - não havia sinal de coca ou do maço de cigarros. A única prova que tinham era o testemunho do farmacêutico que me dera a droga. Mas me levaram preso assim mesmo para a delegacia, onde soube que teria de passar o fim de semana, à espera da minha apresentação ao tribunal na manhã de segunda-feira. (...) De quatro em quatro horas, um dos guardas trazia-me o envelope e eu injetava a droga dentro da cela." Carneiro não fica exatamente escandalizado com as histórias junkies de Chet Baker. A heroína foi uma das coisas mais íntimas entre os jazzistas dos anos 50 e 60. "O Charlie Parker foi o grande motor disso", avalia o crítico. "Ele foi uma coisa tão extraordinária que chegou uma época, todo mundo achava que para tocar bem tinha de ficar high", pondera. "Pegue o caso do Stan Getz, por exemplo: era um dos sujeitos mais educados e elegantes que conheci, mas uma vez chegou a assaltar uma farmácia à mão armada para conseguir algumas drogas", diz. Parcerias - O trompetista também lembra suas grandes parcerias, os grandes jazzistas com quem tocou, como Gerry Mulligan, outro que gostava de brown sugar (apelido da heroína). "Olhando agora em retrospectiva, parece incrível que tenhamos ficado tanto tempo juntos", conta. "Gerry ganhou o primeiro lugar nos referendos da Down Beat e da Metronome, na categoria de sax barítono, e eu na de trompete, quando ele se foi", lembra. Para Luiz Orlando Carneiro, as anotações esparsas de Memórias Perdidas cobrem um período fundamental para se conhecer a obra e a natureza do trabalho de Chet Baker. Carneiro o viu duas vezes ao vivo. Uma vez em Nova York, num show que tinha o inigualável Charlie Haden no contrabaixo, em 1982. Em 1985, voltou a encontrá-lo no New Morning, em Paris. "Era ele, o pianista e o baixista", conta Chet. "Ele tamborilou com os dedos na bateria, pegou o flugelhorn, tentou algumas notas e, não conseguindo nada, jogou o instrumento no chão, foi embora e não apareceu mais." Em 13 de maio de 1988, Chet Baker, desdentado e com a alma em chamas, voou da janela do segundo andar de um hotel de Amsterdã. Tornou-se um grande herói romântico do jazz, um herói triste e de alma amargurada.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.