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Jovens virtuosos fazem soul e jazz em laje de Cidade Tiradentes

Grupo Louva na Laje chamou atenção de Ed Motta: "Eles são incríveis"

Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

Vinicius Coelho ainda não viu nada muito além do horizonte de tijolos desalinhados dos muros e conjuntos habitacionais de Cidade Tiradentes. Sua mãe, uma cuidadora de idosos que não precisou de marido para criar cinco filhos, parece ter feito um bom trabalho. Vinicius não joga palavra fora. Estuda o ambiente, fala baixo. É pequeno, encolhido, de uma timidez subserviente, mas chega à laje da Rua Doze Apóstolos com um brilho de quem sabe que está prestes a virar o jogo. Sentado ao lado do baterista, ele recebe uma guitarra emprestada e a música começa. Sua base é suingada e seu solo, corajoso. Costura escalas, brinca com o ritmo e, perto do fim, pela primeira vez, olha para o repórter com a confiança de quem sabe que não é mais um ser invisível.

Vinicius 'Vini King': seuestudo éouvirdiscos de George Benson em casa Foto: SERGIO CASTRO/ESTADÃO

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Sua fragilidade termina ali, ao lado dos quatro amigos que a música das igrejas evangélicas da região fez com que se cruzassem. Não há grandes sonhos – eles nunca lançaram discos nem se apresentaram fora da laje – mas o som que fazem acabou chamando a atenção também de quem não é das comunidades religiosas. “Quem são esses caras?”, perguntou Ed Motta em um post, compartilhando um vídeo em que Vinícius sola um tema de jazz fusion. Ao Estado, Ed disse mais: “Eu fiquei impressionado com o baterista e com a fraseologia do guitarrista. Ele é incrível”. Sem saber que a reportagem havia falado com Ed, Vinicius respondeu assim à pergunta “Quem é uma inspiração para você?”: “Ed Motta.”

A ideia de reuni-los no último andar de um sobrado no chamado Setor G de Cidade Tiradentes foi de Thiago Vieira, 29 anos, o vocalista do grupo. Depois de sonhar com a expressão “louva na laje”, ele fez uma pesquisa na internet para saber se poderia batizar a ideia com este nome. “Só apareceu ‘funk na laje’, ‘menina da laje’. O mais sadio foi ‘churrasco na laje’”. O ‘louva’ do nome indica a intenção evangelizadora nas letras, mas a liberdade musical é irrestrita, com uma inclinação maior para soul, funk e temas instrumentais de jazz e fusion, onde aparece mais o potencial de integrantes como Vinicius, já chamado de Vini King para lembrar BB King, e do baterista Henrique Matias, também de 18 anos. “Ele traz a influência dos bateristas de gospel modernos, sabe tudo”, fala Ed Motta.

São as igrejas, sobretudo em bairros da periferia de São Paulo, que proporcionam o primeiro contato de jovens e adolescentes com instrumentos musicais. As principais orquestras do País têm em suas fileiras inúmeros seguidores da palavra de Deus, sobretudo em naipes de sopro e metais. O próprio Ed Motta toca ou já tocou com músicos evangélicos, como o trompetista referência Jessé Sadoc, o baterista Marcos Kinder e o contrabaixista Sidiel Vieira.

Vinicius conta que sentiu o primeiro arrepio aos nove anos, ao ver um baterista tocando em uma Assembleia de Deus. “Comecei a estudar por conta própria.” Henrique Matias tinha quatro quando passou pela mesma experiência em um culto na denominação Ministério Quadrangular. Filho de dona de casa e pai motorista de ônibus, ele ainda não comprou sua própria bateria, mas nunca precisou de uma para expressar o que sentia. Aos cinco, criou um kit com o grave do balde, o metálico das panelas e o abafado do sofá. Era tudo de que precisava. “Fui me aprimorando.” O instrumento que usa, de pratos rachados, já é uma realização. Foi com ele que mostrou o fraseado vigoroso que impressionou Ed Motta.

O investimento em música feito com forças redobradas por algumas igrejas tem sua explicação na história do tecladista do grupo, Carlos André Almeida, o Carlinhos, 35 anos. Sua origem foi o cavaquinho, tocando em grupos de samba “do mundo” – a expressão que usa quando fala de algo que não pertence aos evangélicos. Com serviços prestados ao sambista Arlindo Cruz e a grupos de pagode, Carlinhos ligou a TV e assistiu a um culto da igreja Renascer em Cristo. Antes de se comover com qualquer mensagem das escrituras sagradas, sentiu a força das guitarras e dos teclados dos grupos que apareciam durante a transmissão. Seu amigo de estradas pelo samba, o baixista Luiz Duque, 42 anos, veio junto para fechar o time da laje.

Duque, mais experiente, é deficiente visual. Suas linhas de baixo são precisas, mesmo saindo de uma peça que apenas copia, com léguas de desvantagem, o Fender Music Man original. Ele usa o instrumento de cinco cordas, o que permite descidas arrojadas aos agudos, mas quer mais. “Ainda chego ao baixo de seis cordas”, diz. Sua formação, praticamente autodidata, foi com dicas de amigos músicos e fitas cassete de baixistas como Pixinga e Arthur Maia.

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Sem verbas para manter um estudo formal, em escolas ou com professores particulares, os jovens valorizam cada dica que recebem. Vini King estuda entre cinco e seis horas por dia. A primeira guitarra que ganhou da mãe, uma Giannini branca e azul, ficou sem trastes depois de tanta prática. “Deu PT, perda total”, diz Thiago. 

Vini chegou a ter quatro meses de aula com um guitarrista de Itaquera, André Guedes, mas desistiu quando o dinheiro acabou. Seu estudo se tornou, assim, um pouco mais intuitivo. Ele ouve George Benson, BB King e John Mayer como se estivesse tendo aulas com cada um deles. Depois, tira seus solos e acordes, pratica improvisos e, enfim, aparece na laje para ensaiar, ansioso por colocar o que aprendeu em teste. “Esses caras estão no caminho certo”, diz Ed Motta. “Só posso pensar isso quando vejo que, mesmo sem instrumentos ou professores, estão em casa se esforçando para aprender com George Benson.”

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