Filha do escritor Paulo Leminski lança disco com suas canções

'Leminskanções' dá novos arranjos a 24 composições do poeta

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Por Murilo Bomfim
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Frequentemente, a cantora e compositora Estrela Ruiz é questionada sobre a influência da poesia de seu pai, Paulo Leminski, na música que ela produz. "A minha infância foi música, música, música", responde veementemente, lembrando que, antes de poeta, Leminski era compositor. Estrela frisa a faceta musical do pai em Leminskanções. Duplo, o álbum soma Essa Noite Vai Ter Sol, com 13 composições assinadas apenas por Leminski, e Se Nem For Terra, Se Transformar, que tem 11 parcerias com nomes como Itamar Assumpção, Moraes Moreira e sua mulher, Alice Ruiz, com quem compôs uma única faixa. Com previsão para chegar às lojas em meados de setembro, o álbum será disponibilizado para download gratuito no domingo. E não por acaso: na data, Leminski completaria 70 anos. "É um dia importante, porque existe um poema em que ele diz 'Quando eu tiver 70 anos, então vai acabar essa adolescência'", explica a compositora. O processo de produção do disco obrigou Estrela a remexer o desorganizado acervo de fitas de seu pai. A pesquisa gerou a certeza de que Leminskanções é apenas o início de um projeto que deve trazer à tona outras raridades do polaco. A princípio, o disco teria outro título. Estrela Ruiz, a idealizadora do projeto, queria deixar claro que, apesar de ter estourado recente e postumamente como poeta, Paulo Leminski também tinha um lado compositor. "Quando comecei a falar sobre o disco, as pessoas diziam que eu estava musicando os poemas do meu pai, e não era isso", conta. Ela lembrou que era comum as pessoas dizerem adorar a canção Verdura, atribuindo a autoria a Caetano Veloso, que gravou a faixa no disco Outras Palavras, de 1981. Achou que 'Verdura' Não É do Caetano daria conta do recado. Depois, pensou melhor e decidiu por Leminskanções.

Celebrado. Compositor tem obra revista por Estrela Ruiz Foto: Juvenal Pereira/Estadão

Ela lança o disco neste domingo e, para deixar claro que é apenas intérprete das canções, assina como Estrelinski e os Paulera, fazendo referência à banda de Leminski que, composta por dois Paulos e um Pedro, levava o nome de Duas Pauladas e Uma Pedrada. As músicas ficam disponíveis para download grátis no www.leminski.com.br - a ideia é liberar o acesso para que o público conheça a obra. No mesmo dia, um show de lançamento do disco ocorre no Museu Oscar Niemeyer, às 19 h, em Curitiba - cidade onde o artista nasceu e morreu e onde Estrela vive hoje. É justamente no domingo que Leminski completaria 70 anos. A data ganha ainda mais significado com um de seus poemas, Quando Eu Tiver Setenta Anos, em que diz "quando eu tiver setenta anos / então vai acabar minha adolescência / vou largar da vida louca / e terminar minha livre-docência / vou fazer o que meu pai quer / começar a vida com passo perfeito (...)". O fator que impulsionou o disco, no entanto, não foi a efeméride. A semente foi plantada em setembro de 2009, quando Leminski foi tema de uma das ocupações do Itaú Cultural, em São Paulo. Na exposição - que tinha curadoria de Ademir Assunção e consultoria da mulher do poeta, Alice Ruiz -, textos, manuscritos e depoimentos em vídeo davam um panorama do legado do paranaense. No entanto, Alice sentiu que as composições não tinham o espaço que deveriam ter e pensou numa solução. "Foi minha mãe quem lançou esse desafio", diz Estrela, que topou fazer um show, na abertura da ocupação, com as músicas do pai. Àquela altura, ela já tinha uma trajetória com a banda Música de Ruiz (da qual também participa seu marido, Téo Ruiz). As 15 faixas executadas na apresentação não conseguiam contemplar a história do letrista. Além disso, Estrela foi instigada por amigos que diziam que o show podia render um álbum. O sucesso do livro Toda Poesia - que, lançado em fevereiro de 2013 pela Companhia das Letras, tem mais de 90 mil exemplares vendidos - impulsionou a produção do disco. "Tentei editais para bancar o álbum, mas o projeto bateu na trave várias vezes. A visão era de que o CD mostraria uma faceta pouco conhecida de um autor que não era tão reconhecido", lembra Estrela. Depois, o projeto foi aprovado via lei de incentivo da prefeitura de Curitiba.

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Paulo Leminski dizia que foi no Mosteiro de São Bento, onde estudou, que se tornou músico. “Porque canto gregoriano eu canto”, disse, no documentário Um Coração de Poeta. "A coisa musical, para mim, vem do lado preto de minha mãe", continuou o poeta, um pouco mais adiante. A confusão estava instalada: o canto-do-gregoriano-polaco-preto de Leminski, portanto, tinha essa explicação assim quase inexplicável, assim como alguns dos seus sucessos mais brilhantes. 

A tecladeira tecnopop de Xixi nas Estrelas, em parceria com Guilherme Arantes, atingiu o dial das rádios nos anos 1980 com uma lufada de ironia travestida de ingenuidade, e era uma notável contribuição de qualidade lírica ao mundo pop. "Quem foi que disse que eles podem vir aqui nas estrelas fazer xixi?"

Sua aparente adesão à neutralidade do pop não era totalmente verdadeira. Quando ele compôs Luzes, via-se que não era apenas um manifesto de concisão popular. Que compositor àquela altura da vida brasileira se sairia com um verso como "Essa noite vai ter sol"?

Muito de sua poesia já parecia nascer música pronta. Dor Ambulante, seu poema-testamento (como o chama o escritor Domingos Pellegrini), foi gravada por Itamar Assumpção e depois por Edvaldo Santana. A letra toda é essa: “Um homem com uma dor/é muito mais elegante/caminha assim de lado/como se chegando atrasado/andasse mais adiante”. 

Como "cantautor", intérprete de si mesmo, Leminski não era lá essas coisas. Se Houver Céu, canção gravada do disco Prazer de Viver, de Paulinho Boca de Cantor, quando tocada por ele mesmo, tinha uma pinta de folk déjà vu, sem grande acabamento melódico. Já Verdura, cantada por Leminski (voz e violão) e Kito Pereira (bateria e percussão), tinha um pique de protest song originalmente - apenas também um arcabouço básico. Caetano a preencheu de uma contra-euforia carmemmirandesca no epílogo, aumentando seu impacto.

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Oração de um Suicida (1981), sucesso da banda Blindagem, era um country-rock cheio de sarcasmo e virou o primeiro grande hit regional de Leminski - até hoje, é possível encontrar bandas posteriores tocando no Paraná. “Teu retrato é poeira luminosa, nebulosa/Brilha tanto e ninguém vê/Era um mundo tão bonito /caprichado de milagres/Deus gostava de florir”.

Moraes Moreira conta uma história engraçada sobre Leminski. "Lá pelo dia 15 de dezembro, a família Leminski baixava no meu apartamento no Rio de Janeiro para passar as festas do final de ano. Eu adorava aquela turma do Leminski, a gente passava dias fazendo música, escrevendo, bebendo, tocando. Foi um dos períodos mais criativos da minha carreira. Um dia, a gente tava sem fazer nada e resolveu tomar um ácido para animar. Tomamos o ácido e ficamos lá, mas o negócio não batia. Virou uma pasmaceira, a gente lá e o ácido não batia. Até que o Leminski levantou e disse, com aquele jeitão dele: "Ôrrrra, esse ácido deve ser fajuto! Esse tempo todo parado aqui e nem um verso, nem uma rima?!?'".

A questão da rima associada ao ritmo parece emergir, dessa pequena inconfidência de Moraes Moreira, como fundamental para a poesia de Leminski até na busca do desregramento, e assim o foi do começo ao fim. Essa sede pela cadência atingia níveis de alto artesanato.

"A fama do meu pai se deu muito mais por meio da música, da inclusão de uma canção numa novela da Globo", já dizia, em 2009, Áurea Leminski, filha do artista, quando se organizava a exposição Ocupações Leminski. Ao contrário de outros poetas-letristas, como Arnaldo Antunes e Wally Salomão, a música de Leminski parece nutrir-se de uma expressão popular mais intuitiva, viva, naturalmente despida das pretensões formais. Ele mesmo preconizava: "Vai vir o dia em que tudo que eu diga seja poesia".

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