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Don L reafirma a existência de um novo rap

Aos 35 anos, rapper que cresceu em Fortaleza faz show em São Paulo para lançar 'Roteiro Pra Aïnouz - Volume 3', disco corajoso e deslumbrante

Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

O Largo do Arouche ficou tenso. Alguns rapazes viram o fotógrafo do jornal com a máquina em punho e resolveram enquadrá-lo. O que fazia ali? Seria mais uma matéria sobre o tráfico no centro, sobre os estilhaços humanos da cracolândia lançados pela operação Luz? O tempo fechou. Os rapazes não perceberam que o objeto das fotos era o rapper Don L e ameaçaram partir pra cima. Ia piorar, mas Don interveio com a verdade de quem sabe ter poucos segundos para falar a coisa certa. “Cara, eu moro aqui ao lado. Você acha mesmo que a gente quer atrapalhar o movimento de vocês?” Don não disse quem era, mas um dos homens descobriu. “Desculpa cara”, disse um deles. “A gente pensou que fosse outra coisa.” E por que o rapper não disse logo quem era? “Em alguns momentos, vale mais você olhar nos olhos das pessoas do que tentar dizer quem você é.”

Don L: ingressos para shows esgotaram em 13 minutos Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO

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Não é simples entender quem é Don L. Esse jovem de 35 anos, filho classe média de mãe cantora e pai funcionário público, nasceu como Gabriel Linhares Rocha em Brasília e mudou-se logo aos 4 para Fortaleza. Sentiu cedo a vontade de ser ele mesmo e deixou a casa aos 16. Se virou como pôde, vendeu CDs pirata nas ruas e morou primeiro em uma área de invasão e depois em um barraco que ele mesmo construiu no Conjunto São Pedro, Favela do Marrocos, costa leste de Fortaleza. Envolveu-se com traficantes por um breve período ao mesmo tempo em que conheceu algo que entraria com urgência em sua vida, atropelando todo o resto. O rap.+++ Crítica: rapper Don L cria, em disco, roteiro para um filme de desamores, desilusões e doses de gim

Don L tem feito rimas inconvenientes desde 2005, quando surgiu com o grupo Costa a Costa ao lado de Nego Gallo, despertando para uma realidade pouco imaginada até então. A força emulada do Nordeste, explícita na mix tape Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa, que surpreendeu Emicida, poderia até derrubar a hegemonia histórica de São Paulo. Don, vestido para a guerrilha, saiu em carreira solo e fez, em 2014, seu primeiro álbum, Caro Vapor – Vida e Veneno de Don L. Era bom, mas não era tudo. Ainda em 2017, o passo mais longo veio com Roteiro Pra Aïnouz – Vol. 3, uma forma cinematográfica de pensar rap não só pela citação no título ao cineasta cearense Karim Aïnouz. O show de lançamento em São Paulo será na quinta, 18, no Sesc Pompeia, mas os ingressos se esgotaram na internet em 13 minutos e nas bilheterias em duas horas.+++ Rincon Sapiência lança arrojado disco de estreia, 'Galanga Livre'

O “filme ao contrário” que começa no ‘volume 3’ é autobiográfico. As músicas de agora estão conectadas com a chegada de Don a São Paulo e com a quebra da muralha que apartou os nordestinos de um cenário de rap nacional por anos. Aqui está um dos pontos de maior contundência no discurso de Don. E ele dá nome aos bois. Sobre bpms mais lentos, um flow deslocado para tempos inusitados da divisão e uma rima que se apoia na fonética das palavras com certo vanguardismo, Don L soa novo no texto e na fórmula. Não foram muitas vezes em que um rapper teve coragem para contestar o seu próprio meio. 

Eu Não te Amo diz assim: “Se é MPBoy a grana vem / Igual passarinhos voando / Colando no Leblon vez em quando / Pra chupar a Lavigne / Mais do que o Athayde faz plano / Na sauna hype do Caetano / Mas eu não te amo...”. Lavigne é Paula Lavigne, produtora e mulher de Caetano Veloso. Athayde é o produtor artístico e ativista social Celso Athayde. Don diz que fala de um sistema, de um processo estabelecido no show biz, não contra as pessoas que cita. “Eu falo em um tom irônico, sem querer desrespeitá-las. Falo mais das estruturas do que das pessoas. Aqui no Brasil existe uma coisa de se dar valor ao status. O status no Brasil vale mais do que dinheiro, e essa é uma das grandes diferenças para os EUA em termos do mercado de entretenimento. As pessoas se deslumbram.”

Caetano volta a ser citado em Fazia Sentido. “Eu tô nesse jogo por um bom tempo / E eu nem gravei um disco / Eu lembro do Caetano me entregar um prêmio / De melhor do nordeste / O que diz sobre isso? / Por que não tinha uma categoria pro Sul? / Então era tipo / Esmola pra segunda divisão, tru..” Ele explica mais na entrevista. “A gente fez um disco (com o Costa a Costa, de 2007) que, hoje, é considerado o melhor de rap do Brasil daquele ano. Mas, na época, tiveram de criar uma categoria específica (na premiação Hutus) para dar um prêmio pra gente, já que não poderiam dar o melhor disco de rap para um grupo do Nordeste. Fomos lutando contra isso o tempo todo.”

A música segue e passa, de novo, por Lavigne, além de Rincon Sapiência, o produtor Rick Bonadio, a cantora Maria Gadu (que dá origem ao verbo “gadulizar”) e pelos rappers Emicida e Rashid. Don L está dizendo aqui que, enquanto a turma pulava seus carnavais, ele já estava vivo a atuante como Don L. Segue a rima: “Mas antes da Lavigne pensar em gadulizar uns MCs / Antes do Rincon ter um hit e receber uma geladeira Rick / Antes dos proemishid ouvirem a minha mix / E sacarem um outro caminho / Eu tava naz’área / Antes de São Paulo inteira dizer ‘chapa’ / Antes do Rio de Janeiro ter a minha marca / Eu já fazia o meu exercício”. A geladeira Rick seria o tempo de inatividade que Rincon teria passado nas mãos do produtor.

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Mas o bem e o mal não são seres tão bem definidos no pensamento de Don L. “Essas pessoas têm seus papéis nessa estrutura, o papo mais complexo. Não é só o bem ou o mal, Deus ou o diabo. Emicida para mim é um gênio. A gente tem de se acostumar a isso. Citar nomes não é sinônimo de desrespeito.”

A nova tomada de postura é também geracional. Se o rap dos anos 1990 tinha sua lista de inimigos colada à parede, o dos anos 2000, não. “A primeira coisa que se fazia antes de escrever um rap era eleger um inimigo. Os opressores eram a polícia, o Estado, o tal do sistema. A partir de certo momento, você vê que nem todo polícia é bandido e um bandido pode estar ali pelas circunstâncias. A gente continua falando das mesmas coisas, mas não estamos mais simplificando, não estamos mais seguindo a cartilha.”

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