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Dois discos mostram o incomparável talento de Nelson Freire

Um deles é de 2017; o outro, gravado em estúdio quando o pianista tinha 22

Por João Marcos Coelho
Atualização:

Aos 72 anos, o pianista Nelson Freire desfruta um momento olímpico. Grava com as mais seletas orquestras e maestros do planeta. Faz recitais onde deseja e com o repertório que decide. Nesse contexto, novas gravações têm convivido com outras que permaneceram inéditas ao longo do tempo.

Novas gravações têm convivido com outras que ficaram inéditas ao longo do tempo Foto: Vitor Salgado

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Acabam de chegar às plataformas digitais e em dois CDs do pianista: um recital Brahms gravado no início deste ano para a Decca; o outro é do selo Audite, e mistura recital e concerto com orquestra. O recital foi gravado em estúdio por Nelson aos 22 anos, em 1966, tocando cinco das peças líricas de Grieg e três peças de Liszt: duas rapsódias húngaras (números 5 e 10), uma delas, salvo engano, que jamais havia gravado (a quinta); e a polonaise n.º 2 evocando o brilho das de Chopin. O concerto n.º 2 de Camille Saint-Saëns foi gravado 20 anos depois, em 1986, com a Orquestra Sinfônica da Rádio de Berlim, regida por Adam Fischer. Acréscimo importante em sua discografia.

Nelson montou o repertório de seu CD Brahms com suas peças preferidas. Revisita, 50 anos depois, a imponente Sonata n.º 3, op. 5, primeira peça que gravou em 1967. Uma leitura à altura dessa sonata, chamada de “sinfonia disfarçada” por Robert Schumann. Afinal, o jovem Brahms pôs nela tudo o que sabia.

Depois de tamanho tour de force, Nelson nos deixa compartilhar as confissões musicais de Brahms nos anos finais da vida. É sintomático, aliás, que Brahms tenha se dedicado ao piano no início (as três sonatas aos 22 anos) e no final de sua vida (em 1892/3, aos 60 anos, com os quatro ciclos de intermezzi e peças curtas, dos opus 116 ao 119). Nelson pinça, aqui e ali, nesse jardim de delícias pianísticas, suas paixões e as toca com imensa delicadeza: o “Capriccio” (op. 116, n.º 1), “breviário do pessimismo”, segundo seu amigo e crítico Hanslick; a linda canção de ninar do op. 117 sobre esses versos: “Dorme tranquila, minha criança, e fique sabendo: não consigo te ver chorar...”; a vigorosa Balada (op. 118, n.º 3) em tudo parecida com a Rapsódia do opus 119 n.º 4. E dois contrastes absolutos que costumam conviver na maturidade das pessoas: a indizível tristeza do Intermezzo n.º 1 e a felicidade ingênua do n.º 3, ambos do opus 119, combinando com a nostálgica versão para piano solo da Valsa op. 39 original para piano a quatro mãos.

De Bach a Offenbach. Foi assim que o pianista polonês Zygmunt Stojowski (1870-1946), aliás professor de Guiomar Novaes (musa eterna de Nelson), qualificou com humor o concerto em sol menor escrito em 17 dias por Saint-Saëns em 1868 a pedido do pianista e compositor russo Anton Rubinstein. De fato, para ouvidos distraídos os compassos iniciais com a nota-pedal no grave e os arabescos na mão direita no piano solo remetem a Bach. E o finale Presto é uma deliciosa tarantela com um pé no vaudeville que Offenbach assinaria sem problemas.

Para Liszt, em carta a Saint-Saëns, “a forma é nova e muito feliz (...) você mantém o brilho do pianista sem sacrificar nenhuma ideia do compositor – regra essencial nesse gênero”. Com razão. Não há movimento lento: ao Andante sostenuto inicial (que tem mais de vibrante do que de sostenuto), seguem-se dois movimentos rápidos, o Allegro scherzando e o Presto à Offenbach.

Se para o grande público a atração é o concerto, para os súditos de Nelson Freire o melhor está no recital. Aos 22 anos, ele acrescentava ao fogo da juventude o toque aveludado nessas miniaturas líricas de Grieg. Confira a delicadeza dos trêmolos de “Passarinho” (opus 43, n.º 4), um minuto e meio de puro encantamento; ou a introspecção quase schumanniana em “Viajante solitário” (op. 43, n.º 2).

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