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Djavan volta às inéditas em 'Rua dos Amores'

Cantor e compositor explica porque não entra no bonde dos artistas produzidos

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Por Julio Maria
Atualização:

Djavan está só. Ou melhor, sempre esteve. Foi só que o menino de 3 anos se sentiu quando o pai holandês, caixeiro-viajante, se mandou de casa e deixou a mãe com ele e os dois irmãos no colo. Mais só ainda ficou ao chegar ao Rio de Maceió, com 23 anos, tentando entrar na turma dos cariocas, dos paulistas, dos baianos, dos pernambucanos ou de qualquer filho de Deus que o aceitasse como amigo já que, por essência ou falta de quórum, alagoano nunca formou panela. Solitário de dar dó, sentava-se todas as tardes no mesmo banco da Praça General Osório para desabar de tanto vazio.

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Quando procurou as gravadoras, sentiu-se isolado ao mostrar as primeiras canções. Assim que o ouviam, decretavam: "Isso que você faz é muito estranho". Sua poesia começou a ganhar forma, mas até com alguns de seus versos o deixaram sozinho. "Açaí, guardiã, zum de besouro, um ímã..." Que diabo era aquilo? Aos 63 anos, Djavan ressurge com Rua dos Amores, o primeiro disco de inéditas desde 2007. A capa traz apenas seu rosto e a contra, o nome de 13 canções e um só crédito para duas funções: "Produtor e arranjador: Djavan". Uma solidão, pela primeira vez, vivida por opção.

Sua música sai de onde?

Minha mãe cantava em casa, minha irmã também. Somos em três. Meu irmão tem 14 anos a mais do que eu e minha irmã tem 11 anos a mais. Então eu sou um ser que não viria ao mundo a rigor, eu surgi do nada. Quando tinha 3 anos, minha mãe pedia para eu cantar para as suas amigas que iam em casa. Você imagina a cena: eu nu em casa - porque no Nordeste existe essa mania de os meninos ficarem nus até 4, 5 anos - cantando para as amigas de minha mãe (risos).

Numa época em que todos chamam um produtor badalado para gravar seus discos, por que decidiu fazer tudo sozinho?

Olha, há muito tempo comecei a ter dificuldade para revelar as minhas ideias de maneira íntegra. Em um disco você tem a produção, os arranjos e a interpretação. Se você subdividir isso, vai ter um disco ideologicamente subdividido. Porque se a música recebe o arranjo de um outro, tem a participação dele na identificação da ideia. Se recebe a produção de outro, tem a mão desse outro. E o produtor leva o disco para onde ele quiser, o disco sai da mixagem com a cara do produtor, com o desejo que o produtor teve de conduzi-lo. Eu comecei a ter dificuldade com isso.

Por quê?

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Chamei um amigo arranjador talentosíssimo e dei a ele uma música para que fizesse um arranjo para mim. O arranjo ficou lindo, mas incompatível com a minha ideia original. E pra dizer a ele que eu não iria usar?

Os discos de hoje viraram discos de produtores?

O produtor é usado para direcionar para onde ele quer, ou para onde o patrocinador ou a gravadora quer. A maioria dos artistas está envolvida com essa postura, ele vai ser conduzido. Eu nunca consegui ser conduzido. Se fosse para ser conduzido, talvez não estivesse aqui hoje. Desde o início sofri intervenções violentas para mudar minha música. Quando fui ser ouvido pela primeira vez pelos produtores, já houve essa polêmica. "Você tem algum talento, mas a música que você faz é muito estranha. Não se sabe onde está a primeira parte, é complicado, você tem que mudar isso, fazer uma coisa mais acessível para facilitar sua própria vida." Tinham razão os que falavam assim, mas outros também disseram: "Não, essa coisa estranha é o seu trunfo, não mexa nisso. Você vai sofrer mais, vai ter mais problemas, mas vá em cima disso".

Poesia é para ser explicada?

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Não se explica não. Poesia é para ver, ouvir, imaginar. Neguinho quer ficar satisfeito apenas lendo. Não dá. Poesia é estado de espírito e não está para todos. Poesia é pra sentir.

As pessoas podem sentir algo mesmo se não entenderem letras como "açaí, guardiã, zum de besouro, um ímã, branca é a tez da manhã..."?

Quando o sujeito quer penetrar no universo que o poeta sugeriu, tem de ler o texto algumas vezes. Um poeta querido por todos, e que tem uma poesia que requer muita introspecção, é o Federico García Lorca. Poesia se alcança ou não. Acho uma coisa louca as pessoas não verem sentido em uma associação como "açaí, guardiã". Como não pode haver sentido? Fale com qualquer pessoa do Norte, que é onde essa fruta dá em abundância e mantém uma população inteira, que você vai ver que ela entenderá tudo. Açaí, guardiã do povo. É ela que guarda, que sustenta aquela existência.

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E o "zum de besouro, um ímã"?

Eu adoro a mata, e não há barulho na mata que não me leve até ele. Fico aflito para saber quem o está produzindo, por isso o ímã. Agora, é óbvio que eu entendo pessoas que não se adaptem a uma imagem.

Seu disco novo tem uma canção, Acerto de Contas, que diz o seguinte: "Outra madrugada já passou e você nem lô". O que é esse lô?

Nem lô, nem me ligou, nem deu sinal. É um desafio causar este estranhamento. Arcoirizando, caetanear. Em Oceano, transformei um substantivo em verbo. Em Ares Sutis, fiz o contrário.

E em Faltando um Pedaço você falou do "lobo correndo em círculos pra alimentar a matilha" quando o certo era alcateia (matilha é o coletivo de cães), não foi?

Há recursos aos quais eu não gosto de recorrer porque as pessoas estão cada vez mais estudando as letras nas faculdades. Penso que não adianta você construir a melhor imagem sem obedecer aos trâmites da língua. A língua portuguesa tem de ser usada corretamente. Agora, o poeta goza de uma colher de chá chamada licença poética. Ouça bem: "Um lobo correndo em círculos pra alimentar a alcateia." Alcateia ninguém merece. Não, sinceramente, ninguém merece. É claro que o coletivo de lobo é alcateia, a gente sabe disso, mas eu não poderia usar alcateia.

E se mudasse a construção e achasse outra palavra no verso que rimasse com alcateia?

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Alcateia é muito feio. E melodicamente, não era bom. Todos os compositores sofrem esse tipo de pressão, e às vezes têm de optar. Existe uma música ali te enforcando, te limitando. Eu não tenho dúvida de que a beleza do verbo é importante, não mais do que as regras da língua, mas é muito importante também. Tem uma outra música no disco Matizes, o Azedo e Amargo. "Ela é chegada a azedo e amargo" seria a construção certa, mas eu coloquei: "Ela é chegada em azedo e amargo". Existia uma cacofonia que não era bacana. Não gosto de fazer isso, acho até que diminui a força da imagem, mas às vezes me vejo obrigado.

Seu novo disco parece ter sido feito em uma zona de conforto. Acredita nisso ou sente que sua linguagem está em evolução?

Venho em evolução. Evolui letra, harmonia. Sinto isso. Se você ouvir minhas músicas desde o começo, vai ver essa evolução. E se não há evolução, eu estou maravilhosamente iludido, porque isso é o que me basta, a ilusão de que estou evoluindo. Estou feliz da vida e vou morrer feliz. Se você ouvir esse disco agora e ouvir o disco Luz, por exemplo, de 30 anos atrás, existe uma evolução na construção dos acordes. E tem um detalhe: mesmo que haja uma pessoa que se pareça comigo por aí, quem gosta de Djavan só vai poder buscá-lo em mim. Isso dá conforto para eu seguir do meu jeito.

Você chegou dez anos depois da formação da MPB clássica, de Caetano, Gil e Chico. Qual é a sua turma?

Isso eu não tive, e talvez tenha sido o mais difícil pra mim. Veja que não existe a turma alagoana. Tem turma baiana, pernambucana, cearense, carioca, paulista, mas alagoana não tem. Eu me sentia muito só. Senti falta de carinho, de aconchego, chorei muito.

Chorou por quê?

Solidão, falta de perspectiva. Tinha um banco aqui no Rio, na Praça General Osório, que ficava atrás de uns arbustos. Toda tarde eu sentava ali para chorar. Uma turma me fez falta.

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Até que Roberto Carlos ligou para pedir uma música...

Fiz A Ilha para o Roberto, mas ele mudou a letra porque tem umas palavras que ele não diz. A música dizia "o cheiro de amor empestado no ar". Ele achou empestado demais e colocou "o cheiro de amor espalhado no ar".

Arquitetura também é música?

Amo arquitetura. Eu seria um arquiteto felicíssimo. Antoni Gaudí é o meu guru. Acho ele um louco. Imagine no começo do século passado o sujeito fazer uma arquitetura que não tinha relação nem com o futuro nem com o passado. Ele é um ser solitário no mundo, imagino quanto sofreu...

Parece até uma história familiar...

É, mas ele morreu grotescamente. Dizem que quando estava fazendo a Sagrada Família, em Barcelona, gostava de ir saindo, se distanciando da obra aos poucos. Quando vinha andando para ficar mais longe da Basílica, veio um bonde e tchum, pegou ele.

Uma imagem forte é a de sua participação na campanha de Lula para elegê-lo presidente em 1989. Treze anos depois, valeu a pena?

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Sim, demais. O Lula entrou para a história como um dos presidentes mais importantes do País, fez o que mais queria, que era diminuir as diferenças. Havia 45 milhões de miseráveis quando ele entrou. Ao sair, deixou 20 milhões. Algo muito grande em oito anos de governo.

E deixou também o mensalão. Isso não arranha sua confiança?

Quando apoio um candidato, não apoio a pessoa física nem seu partido, mas sua ideia política. A ideia do Lula era diminuir as diferenças e incluir o máximo de miseráveis na sociedade. Quem vai ser ou não ser condenado pelo Supremo por práticas com o mensalão é o que menos importa. O que vemos é inédito no Brasil e tem de ser louvado porque está ratificando nossa democracia. A prática política vai mudar. Agora nego sabe que, se pisar na bola, vai pra cadeia.

 

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