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Disco de Dori Caymmi reúne suas composições para peça censurada de Mário Lago

O músico, que está voltando ao Brasil depois de mais de duas décadas morando nos Estados Unidos, fala sobre a missão recebida

Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

Dori Caymmi recebeu uma missão histórica. Em 2014, Graça Lago colocou em suas mãos letras que seu pai, Mário Lago, havia feito para um musical, que colocaria luzes em um episódio tão dramático quanto desconhecido. Em 8 de novembro de 1799, eram enforcados na Praça da Piedade, em Salvador, João de Deus Nascimento, Lucas Dantas Torres, Luiz Gonzaga das Virgens e Manuel Faustino dos Santos. Homens acusados de pregarem a independência do Brasil para criar uma pátria onde todos seriam iguais. Mário Lago (morto em 2002, aos 90 anos), marxista de formação, preso sete vezes por suas ideias, entre 1932 e 1969, se identificou com o que descobriu. Fez a obra Foru Quatro Tiradente na Conjuração Baiana e a deitou à espera de encenação. Uma leitura nos anos 1970 chegou a ser feita, mas censurada pelo regime militar. Impressionantemente atual, fica impossível não querer interpretá-la com as sensações de 2016. “Nós somos sacaninhas / E aqui estamos na historinha para delação / Seja lá qual for o lado / Vendemos por um bom trocado para delação”, diz a canção de 1:50 minuto Três Joaquins.

Para musicar o texto de Mário Lago e transformar esse trabalho, Foru Quatro Tiradente na Conjuração Baiana, em disco, Dori usou formatos mais terrenos. Fez sua música ao violão, com poucos arranjos. Teve vozes de Sérgio Santos, Renato Braz, Joyce Moreno, Mônica Salmaso e do português Roberto Leão. Contou com a flauta de Teco Cardoso, o baixo de Rodolfo Stroeter e a percussão de Bré. Seu violão sai à frente sempre, em uma linguagem sem surpresas ou ousadias. Algo, diz ele, intencional. “Eu não tenho muita canção linda nesse projeto, tenho mais esse apelo revolucionário do texto do Mário. Não dava para ficar me estendendo em arranjos, burilações. Ficou uma coisa mais chão mesmo, dos quatro cidadãos negros do Brasil se revoltando contra os colonizadores.”

‘Quando vejo que há três, quatro, cinco pessoas interessadas no meu trabalho, fico muito feliz’ Foto: Fabio Motta|Estadão

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Dori Caymmi, que está voltando ao Brasil, depois de mais de duas décadas morando nos Estados Unidos, falou com o Estado, por telefone, do Rio.

Muito complicado assinar uma parceria com um parceiro não presente, como Mário Lago? Foi uma honra ser solicitado pela família de Mário. Sou dividido em três partes: carioca, mineiro e baiano, e não havia estudado essa Revolta dos Alfaiates (um dos nomes da Conjuração Baiana). Ninguém estudou. Eu gostaria muito que esse trabalho fosse encenado.

Você ainda mora na Califórnia? Sim, há 23 anos. Mas estou querendo voltar, ainda este ano.

E por quê? Ficou inviável. Eu tenho que sustentar minha casa em dólar, ganhando em real. Assim, fico mais quebrado do que o Brasil. Eu só trabalho no Brasil, ganho em real. No ano passado, fiz apenas dois shows nos EUA. Este ano fiz um só, em um clube em Nova York. Com a morte dos meus pais, em 2008, eu perdi aquela vontade de sentar, pegar o violão e fazer uma música. A perda é algo pavoroso. Eu não conseguia sair dessa encruzilhada, até começar novamente a criar com o Paulo César Pinheiro.

Mas voltar justamente agora, Dori. O Brasil não desanima? Não desanima, mas entristece. Fui criado no meio de brasileiros tão lindos, tão criativos. E nem estou falando do meu pai, mas de Jorge Amado, Di Cavalcanti, Caribé, Nelson Rodrigues, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, João Gilberto... Passar por essa gente e ver essas pessoas de hoje é triste.

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E de onde sai sua vontade, aos 72 anos de idade? Eu estou com muita vontade de jogar bola, vou até os 90. Agora mesmo tenho outro disco novo, na fábrica, de letras musicadas, violão e voz. Tenho redescoberto essa coisa do meu pai, do violão e da voz. Nana sempre gravou samba-canção do Dorival. Danilo é bom nos sambas dele. E eu sou encantado pelas canções praieiras. Nana não teve oportunidade de cantar esse repertório porque papai a censurava, não sei porquê.

Nana diz que você foi a pessoas que a acolheu... Ela sofreu. Papai tinha um lado muito machista, preferia que ninguém fosse artista em casa. Quando ela voltou da Venezuela e se separou, meus pais acharam um absurdo. Para ela, foi um sofrimento muito grande. Nelson Motta queria a Elis Regina cantando Saveiros (de Dori e Motta) e eu queria a Nana. E eu ganhei. Mas ela sofreu, eu coloquei o tom muito alto e ela teve de esganiçar muito. Nana é a minha cantora favorita. Minhas quatro favoritas são Nana, Bethânia, Elis e Clara Nunes. A Gal tem um estilo um pouco mais afetado, mas esse outro pessoal vem com o útero nas mãos. Sobretudo a Nana e a Bethânia.

Você e Nana parecem não ter medo de falar o que pensam, algo que as pessoas evitam cada vez mais. Chega a um ponto em que o politicamente correto leva você a uma série de mentiras. Eu fico Suassuna da vida. E não podemos também pegar um sujeito da importância de Chico Buarque e esculhambar um cara desses porque ele está em uma outra posição política. Isso não existe. Chico é um dos maiores artistas que já existiram, um compositor... meu Deus do céu. Poucas pessoas da minha geração podem ser nomeadas como ele. Chico tem direito de dizer o que quer, esse politicamente correto é uma merda.

É para esse Brasil que você vai voltar, Dori... A qualidade do tratamento que nós demos à nossa população desde o império é falsa, é sem vergonha, é elitista. E, agora, estamos pagando um preço por isso. Vivemos em uma sociedade de 50%, 60% de gente carente que, de repente, teve uma possibilidade melhor na vida. Isso trouxe uma decadência muito grande do ponto de vista cultural, infelizmente. E é um preço que temos que pagar.

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A música também sofre? Sua harmonia, sempre tão refinada, é uma pregação no deserto?  Quando eu vejo que existem três, quatro, cinco pessoas interessadas no meu trabalho, fico muito feliz. E olha que teve muito amigo do meu pai me condenando antes mesmo de eu aparecer. Saveiros, teve gente que disse que meu pai fez e emprestou para mim. Aloysio de Oliveira era amigo íntimo de meu pai e eu era um obstáculo que ele não queria que aparecesse. O Rubem Braga era meu inimigo pessoal por ser amigo dele.

A história da música brasileira está bem contada pelos livros? Olha, tenho por princípio não ler biografias das pessoas que conheci pessoalmente. Uma ou outra me incomodaram brutalmente com coisas que considero inverdades. Por exemplo, eu conheci o Ronaldo Bôscoli, que foi meu primeiro parceiro na Faculdade de Arquitetura no festival O Amor, O Sorriso e a Flor. Fizemos uma bossa nova sem vergonha, mas era o garotinho começando. Do jeito que as pessoas colocam o Ronaldo, eu acho realmente uma sacanagem incomensurável. Eles fazem do Ronaldo um monstro, e ele era um sujeito equilibrado, um grande amigo. As pessoas gostam muito dos doidões. O Tim Maia era um sujeito ótimo, mas que acordava às 4h da manhã para ligar lá em casa e acordar meu pai, chamar meu pai de meu padrinho. Ele levava para a casa dele aquelas mulheres que ele arranjava não sei onde e colocava uma a uma no telefone para falar com meu pai às 4h da manhã, pô! Eu não sei se isso está na biografia dele. Um amigo nosso estava gravando um disco e a Nana colocando a voz. Tim ouviu a Nana e se apaixonou. No dia seguinte, estávamos gravando um disco com esse amigo nosso, que cantava a faixa que Tim ouviu Nana cantar. E Tim começou a esbravejar: “Não canta isso não, para com isso, você não sabe cantar esse troço não! Deixa a Nana cantar”. Tim esculhambou o cara. Eu falei: “Tim Maia, o disco é dele!”.

E o jazz? É algo que parece fazer parte de sua formação... O jazz contemporâneo está desgastado. Ouço Miles Davis, John Coltrane, Bill Evans, Oscar Peterson. Os novos me incomodam. Eu ouviria mais Keith Jarrett se ele não ficasse com aqueles ruídos todos.

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Você viu o concerto de Wayne Shorter com Herbie Hancock? Foi uma grande polêmica o fato de muita gente ter abandonado a sala de concerto no meio do espetáculo... Esses caras não têm mais nada para mostrar, essa é a verdade. Quando o Toots Thielemans fez 90 anos, meu amigo Oscar Castro Neves me convidou para participar da homenagem a ele. Herbie Hancock estava lá e fez tanta baboseira... Sentou-se ao piano e fez um improviso de quem se acha acima do bem e do mal. Se você pegar na internet, veja quando ele faz uma homenagem ao Tom Jobim em uma apresentação no Brasil. Ele toca piano e, ao final, pede desculpas por tanta porcariada que faz no meio do caminho. Ele é um craque, eu o coloquei na minha gravação de Aquarela do Brasil, nos Estados Unidos, porque eu sabia que ele iria emprestar o seu talento, mas não o deixei mexer harmonicamente em nada. Agora, se deixar ele improvisar junto com o Shorter, que é outro doidão, você não vai aguentar. Rapaz, acabei de ver na TV o Chick Corea. Aquilo me deu vontade de dizer: “Chega! Já recebeu seu cachê, agora chega”. Alguns artistas perdem a noção do que estão fazendo porque sabem que já têm uma importância na História.

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