Crítica: Carminho visita a obra de Tom Jobim com altos e baixos

Convidada para regravar canções do compositor, cantora portuguesa é acompanhada pela Banda Nova, que seguiu Tom por dez anos; a mesma dramaticidade do fado que reforça o lirismo do brasileiro pode prejudicar a intérprete nos sambas

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Por Julio Maria
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A fagulha das memórias pelos 90 anos de Tom Jobim em 2017 vem da cantora portuguesa Carminho. Ela lança o álbum Carminho Canta Tom Jobim, disco com 14 músicas de Tom e algumas atrações de peso. Produzido por Vinicius França, empresário de Chico Buarque, o disco tem as participações de Marisa Monte em Estrada do Sol, Chico Buarque em Falando de Amor e Maria Bethânia em Modinha. Carminho dá uma dimensão lusitana no sotaque das interpretações, mas a base permanece sendo terreno mais seguro sobre o qual se pode pisar quando se canta Tom Jobim. Quem faz o suporte das canções de Jobim é a Banda Nova, que o acompanhou por dez anos. Seus integrantes, no disco, são o violonista Paulo Jobim (filho de Tom), o pianista Daniel Jobim (neto), o violoncelista Jaques Morelenbaum e o baterista Paulo Braga.

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Carminho mergulha no repertório de um artista em uma temporada de revisitações e reavaliações. Seu conterrâneo António Zambujo acaba de lançar um disco revendo canções de Chico Buarque; a cantora Wanderléa enfrentou as músicas de Sueli Costa; Teresa Cristina cantou nos palcos a música de Cartola, com Caetano Veloso; e Vanessa Moreno e Fi Maróstica fizeram a visita mais original da temporada ao rever as músicas de Gilberto Gil no disco Cores Vivas.

Carminho colhe frutos nas graças da música brasileira estabelecida. Depois de ser convidada para fazer o disco sobre Tom Jobim, ela recebeu de Paulo uma coleção de 220 músicas de Tom para escolher. “E não havia lado B. Eram 220 músicas do lado A”. A escolha de Carminho, que não contemplou Águas de Março, foi guiada pela fonética. Mesmo se tratando de um mesmo idioma, o português de Brasil e Portugal trazem palavras com pronúncias e acentuações diferentes. “Eu tive de escolher músicas que trouxessem poemas que soassem mais próximos do meu português. Era preciso soar natural.”

Apesar de parecer o porto seguro para cantoras em época de entressafra, gravar Tom Jobim não é missão fácil. Tom faz saltos imprevisíveis nas melodias, propõe harmonias que precisam ser ouvidas com sensibilidade e capacidade do intérprete de “virar junto” com o acorde. Mas enfrentar suas ideias musicais ainda não é o mais difícil. O que se espera de uma gravação de Jobim em pleno 2016 é o elemento surpresa possível que ressalte, e não se sobreponha, ao bálsamo das linhas originais, o frescor renovado, o arranjo que ainda não foi pensado.

Há que se lembrar da frase do pesquisador Zuza Homem de Mello sobre o instante em que o artista fica diante de uma obra desse tamanho, uma pergunta de duas palavras: “Pra quê?” Pra que eu vou fazer isso? Carminho não traz novidades de arranjos, explorados com lugar comum pela Banda Nova, uma previsibilidade amiga da qual Jobim não precisa mais.

O que justifica a gravação de Carminho é a dramaticidade de sua veia fadista. Ela abraça a alma de Jobim sobretudo em canções como Retrato em Branco e Preto (aqui sim o frescor de uma ideia simples: apenas com voz e o violoncelo), Modinha, a sensacional Luiza, O Que Tinha de Ser e Sabiá, que começa com uma introdução declamada de Fernanda Montenegro, atriz apaixonada por Carminho. Fernanda enviou um texto para os jornalistas: “Carminho faz deste Carminho Canta Jobim, através de sua voz de pura saudade carnificada, uma retomada, um reencontro de culturas musicais tão próximas, tão organicamente interligadas. Este recital de Carminho nos comove não só pelo cantar, mas pelo absoluto domínio do “dizer” a nossa lírica, a lírica brasileira de raiz tão lusa, tão ibérica. Dou como exemplo a canção/modinha Sabiá.”

A mesma dor não poderia estar em Triste, que de triste, nas quedas de notas jobinianas, só tem o nome. Carminho não cantaria samba como se fosse uma brasileira, mas seria melhor também que não o cantasse como se estivesse diante de um fado. A intenção é outra, o registro emocional é diferente. Em Wave ela brilha mais e, mesmo com os arroubos do fado, ela não derruba a alegria de Jobim. Estrada do Sol é uma bela entrega, um dueto com Marisa Monte, uma brasileira de tonalidades naturalmente lusitanas. As duas juntas se divertem com folga.

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As regravações têm outro sentido, no ano em que Jobim chegaria aos 90 anos se não tivesse partido aos 67 anos, em 8 de dezembro de 1994. Carminho diz que aos artistas novos cabe também o papel de reapresentar os grandes criadores às novas gerações e plateias que ainda o conhecem de forma superficial. “Alguns desses temas não são de conhecimento do público português. Muitos podem até conhecê-los, mas não sabem que o autor é Jobim. Não podemos só querer colocar músicas novas no mundo, já há tanta música no mundo que é preciso ter cuidado ao se colocar outras.”

A aventura dos universos alheios

Há formas e formas de releituras, jeitos e abordagens das mais diferentes diante de um microfone no momento de se gravar as canções de um ídolo. A música brasileira passa por um processo de revisionismo necessário e saudável, mas que pode ser também um risco aos intérpretes que se aventurarem a entrar em mundos alheios.

Wanderléa cantou recentemente Sueli Costa. Sua entrega às estruturas menos convencionais é invejável e sua dedicação na preparação ficou explícita, mas o universo de Sueli parece ter sido um pouco demais para a escola de Wanderléa, de mergulhos emocionais menos intensos.

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Zambujo foi a Chico Buarque e o colocou na linguagem portuguesa com um grau maior de arrojo conceitual de arranjos do que fez sua conterrânea, Carminho, com Jobim. Não é um grande esforço fazer Chico soar ibérico, mas Zambujo acertou o tom de sua visita. No início do ano, o compositor Romulo Fróes surpreendeu ao chegar com o disco Rei Vadio pelo Selo Sesc, interpretando a obra de Nelson Cavaquinho. De todas as retomadas, esta foi a mais corajosa, mais inventiva e ousada. Sua construção partiu de uma quase demolição, deixando das estruturas de Nelson apenas a viga central das estranhezas para ser usada em um outro edifício. A reconstrução mostrou um Nelson Cavaquinho sem preocupação com o acabamento, um artista nascido de suas limitações.

Mas, se houvesse um prêmio de melhor trabalho de releitura, ele iria para a reinvenção que a cantora Vanessa Moreno e o baixista Fi Maróstica fizeram para a obra de Gilberto Gil. Cores Vivas consegue pintar as várias tonalidades da música de Gil com apenas dois instrumentos: a voz de Vanessa e o baixo de Fi Maróstica. Ali está o verdadeiro sentido de uma releitura, o equilíbrio perfeito entre a criação e o respeito ao que já se está posto.

Carminho diz na entrevista ao Estado uma frase curiosa: é preciso cuidado para se colocar música nova no mundo. Ela tem razão. Há uma superpopulação de obras esperando por um artista que a releia, que acenda luzes sobre as trevas.

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