Cooperativa Odradek Records investe em músicos e repertórios clássicos

Pianista americano John Anderson fundou e dirige empresa que se define como democrática, sem fins lucrativos e controlada pelos músicos; foco é música de concerto

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

Compadrio, tráfico de influência, lobby, troca de favores... Não, o assunto aqui não é política. Esses delitos também são moeda corrente no mundo da música gravada. Há muitas décadas, a indústria investe pesado em produtos de qualidade pra lá de discutível. O critério é o lucro, não a qualidade. Na engrenagem da cultura de massa, as mídias eletrônicas e impressas, incluindo a crítica jornalística e levando em conta as redes sociais, são cooptadas para impulsionar as celebridades. Esta máquina perversa contaminaria o Olimpo aparentemente puro da música clássica?

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Talvez por seu tamanho – 2% a 3% do mercado global –, é na música de concerto que tais práticas afloram de modo mais contundente. Concertos, gravações, mídia, empresários musicais e os responsáveis por grandes instituições culturais chafurdam num pântano pelo qual os músicos precisam trafegar, se quiserem alimentar algum sonho de futuro e afirmação em suas carreiras. O resultado: sempre as mesmas obras, os mesmos compositores, ao vivo e em gravações. Novos músicos só são admitidos se toparem o jogo. 

A meritocracia, modelo democrático e objetivo de se impulsionar a qualidade da música e dos que a praticam, até agora só chegou às audições para admissão de músicos nas orquestras, de tempos para cá feitas às cegas: o júri decide ouvindo o músico atrás de um biombo. Mesmo assim, há notícias de jurados dispensados de orquestras só porque reprovaram determinados candidatos.

 

Tudo que você leu até agora se baseia em reflexões do pianista norte-americano John Anderson, nascido em Lawrence, no Kansas, e hoje radicado na Itália, onde dirige a associação musical italiana Progetto Odradek. Há dois anos, ele decidiu enfrentar essas questões. E fundou a Odradek Records, com sede em sua cidade natal, que se define como uma “cooperativa clássica democrática, sem fins lucrativos e controlada pelos músicos”. 

A declaração de princípios e uma exposição detalhada da atuação da gravadora estão no site da empresa. A seguir, trechos da entrevista concedida ao Estado por email.

De 2012 para cá, a Odradek lançou 12 CDs, levando em conta apenas a qualidade do músico e/ou grupo que a apresenta, o repertório e a qualidade da performance. Os produtos são distribuídos em CDs e download. Qualquer músico, garante Anderson, em qualquer local do planeta, pode propor sua demo (é como se chama o CD para exame). “Nossa meta é criar um sistema de avaliação por mérito análogo ao do processo de avaliação no mundo científico.” 

Ao todo, 25 músicos participam da Odradek. Os pianistas são maioria, mas há também uma orquestra, um grupo de música medieval, outro de música contemporânea, um trio de piano e cordas, um violoncelista e um violonista. São eles que recebem as demos anônimas e as aprovam ou reprovam. A origem deste júri é eclética: França, Itália, Espanha, Inglaterra, Armênia, Rússia, Japão, Holanda, Malásia, Hungria, EUA, Lituânia, Portugal... e Brasil. Um dos recém-chegados à Odradek é o pianista brasileiro Ronaldo Rolim. Radicado nos EUA, ele integra o Trio Appassionata[LEIA AO LADO], que lança seu CD no segundo semestre. 

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Kafka na cabeça. John Anderson inspirou-se num miniconto de Franz Kafka para escolher o nome da gravadora. “Odradek pode ter muitos significados, é um paradoxo, um objeto que está vivo. Poderia representar cultura, religião, arte, tradição e muitas outras coisas. Uma de suas características mais importantes é que é aparentemente velho e inútil e, portanto, sem valor. Mas, de alguma forma, ele tem valor, o suficiente para que seja mantido ao redor e não jogado fora. Fiquei impressionado quando Claudio Abbado disse que a cultura é um bem público, como a água. As instituições públicas, museus, teatros, salas, são como aquedutos. Estou pensando a música como ‘utilidade pública’, que serve à comunidade. Algo que não é propriedade de ninguém, mas é vital, útil para todos.” 

Anderson é transparente. “É uma cooperativa sem fins lucrativos – todos os lucros vão para os artistas. As despesas são divididas entre a Odradek e os músicos, que investem entre 40 e 60%. Quando o selo recupera seus adiantamentos, todos os lucros serão creditados na conta do músico.” 

Este modelo de gestão permite a abertura de espaço para repertórios raramente presentes em discos e também para músicos desconhecidos. Pode ser utópico. Teria Anderson realizado o sonho de todo artista desde Beethoven, que se declarava “proprietário de um cérebro”? “Nosso objetivo é dar aos artistas, que são a ‘força de trabalho’ do selo, o controle sobre os meios de produção.” Tomara que como o personagem de Kafka, ele sobreviva e frutifique. Um pouco porque, como define o escritor checo, “o conjunto parece sem sentido, porém completo à sua maneira”. Outro tanto porque as utopias têm tudo para ser apenas verdades prematuras, como escreveu o poeta Lamartine.

 

Entrevista com o pianista brasileiro Ronaldo Rolim

Como você ficou sabendo da Odradek?

Por acaso. Estava lendo o blog do (jornalista musical inglês) Norman Lebrecht e vi um post a respeito do novo selo. Fiquei entusiasmado com a iniciativa, pois ali tinha visto que seria uma boa oportunidade para mandar uma proposta do Trio Appassionata.

Vocês já tinham um projeto de gravação?

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Já. Imaginei que não custaria nada entrar em contato com eles para ver se haveria alguma possibilidade de tentarmos algo. John (Anderson) se interessou de imediato.

Houve algum tipo de interferência no projeto?

A princípio, o trio pensava em gravar um álbum com peças do nosso repertório mais a obra encomendada. John sugeriu um programa de compositores americanos, de Charles Ives em diante, no sentido cronológico. Sugeriu também um trio de Eric Moe, compositor cuja música ele gostaria de promover. Gravamos então uma demo com as peças. Felizmente deu tudo certo, e em agosto de 2013 gravamos o CD em Nova York.

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