Chico incorpora Julinho da Adelaide em entrevista para zombar da ditadura

Conversa em transe com o repórter Mario Prata é registrado em CD

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Por Edmundo Leite - O Estado de S. Paulo
Atualização:

"Foi neste momento aí que eu despertei pra música popular", explicou o entrevistado ao repórter, contando em detalhes como ficou marcado com duas cicatrizes no rosto depois de ser atingido pelo violão lançado por Sérgio Ricardo contra a plateia que o vaiava no festival de MPB da Record em 1967. "Pegou assim: o cabo aqui e a caixa desse outro lado."

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Sete anos depois do incidente, dizia que as marcas o deixavam desconfortável em permitir ser fotografado para a reportagem sobre o seu sucesso como compositor. "Eu fico meio nervoso quando falo nisso", soltou Julinho da Adelaide logo no início da conversa.

Com duas canções no repertório do visado Chico Buarque naquele 1974 de chumbo e censura, o autor de Acorda Amor, aquela do "chama o ladrão", e Jorge Maravilha ("Você não gosta de mim, mas sua filha gosta") despertava a curiosidade do público e da imprensa.

Segundo Chico falava em suas apresentações, Julinho da Adelaide era um "compositor de morro carioca que vivia mais nas páginas policiais e que de repente passou para as páginas de crônica musical." Tudo cascata. Como todos no meio sabiam - menos os censores - cansado de ver suas obras vetadas, Chico resolvera, de gaiatice, mandar algumas letras para aprovação assinando como Julinho da Adelaide. O blefe funcionou, as letras foram liberadas e Chico se divertia nos shows dando crédito ao autor imaginário.

A coisa, que já estava divertida, ficaria ainda melhor quando Mario Prata, um jovem repórter que num futuro breve seria o renomado escritor da novela Estúpido Cúpido, botou na cabeça de entrevistar o tal Julinho. Em tempos que a realidade parecia ficção, Chico topou. O editor do jornal, Samuel Wainer, também. E o popular Última Hora publicaria no cívico dia 7 de Setembro uma grande entrevista com Julinho que se estenderia pela edição do dia seguinte.

A gravação original da mitológica entrevista de Chico Buarque incorporando o heterônimo chega agora ao CD, encartado num caprichado almanaque que Prata escreveu para o escritório de advocacia Pinheiro Neto. O livro, com produção visual do artista plástico Elifas Andreato e o disquinho do registro histórico, será lançado dia 21, em comemoração aos 70 anos da tradicional banca de advogados paulistana. A tiragem de 10 mil exemplares será distribuída para clientes, colaboradores e parceiros da empresa (o portal do Estadão traz trechos exclusivos do áudio).

Trinta e oito anos depois, Prata está exultante. "O que eu acho rico nesse registro é a possibilidade de ver um criador inventando aquilo na hora."

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Em quase uma hora de conversa, Chico incorpora Julinho da Adelaide sem titubear ao contar com detalhes e de maneira verossímil a vida do personagem nascido na Rocinha. "E com a história da cicatriz ele já começa dando uma solução para o problema da fotografia, que não teria na entrevista publicada", lembra o escritor. A combinação para a entrevista começou com Prata indo à casa do artista, no Rio, para fazer a proposta. Chico aceitou e acertaram de se encontrar na residência do pai dele, em São Paulo. E ali, Prata era da casa.

Amigo da família desde que cursara faculdade de Economia com Sergito, irmão de Chico, na noite da entrevista o repórter encontrou os Buarque de Hollanda e alguns amigos reunidos. "Antes de começar, o Chico pediu um tempo e subiu para o seu antigo quarto. Ficou uma hora lá e quando desceu e pediu para ligar o gravador já não era ele, mas o Julinho." Não foi o único santo a baixar por ali. Todos na mesa, regada a uísque e cigarro, entraram no jogo. O pai, Sérgio, se aproximou com uma antiga enciclopédia alemã com uma foto de uma negra e apontou: "Adelaide". O cunhado Homerinho e o repórter do concorrente Jornal da Tarde, Melchíades Cunha Jr, também entrevistavam e apertavam Julinho para tirar mais informações sobre a sua vida obscura. Julinho chega a se exaltar em alguns momentos. Fica indignado com a pergunta dos entrevistadores sobre o relacionamento da mãe Adelaide com o poeta e compositor Vinícius de Moraes: "Não se pode falar assim da minha mãe. Minha mãe é muito honesta. Ela casou mais de uma vez, mas casou sempre."

Outro personagem crucial da história de Julinho é o irmão e procurador do compositor de mentirinha. "É ele que quebra todos os galhos, entende?" O nome do tipo inventado por Chico foi inspirado no irmão de Prata, Leonel. "Outro dia veio um cara e disse que tinha feito um contrato leonino comigo. Isso é trocadilho. Porque o cara chama Leonel e o contrato leonino. E só porque ele ganha 50%. Agora, ele não é só um empresário. Se fosse só um empresário, tá legal, ganhava 20%. Ele não é meu empresário. É meu conselheiro e irmão."

Falastrão, Julinho se dispõe a dar sua opinião sobre tudo o que estava acontecendo na música brasileira. Do sambão de Benito Di Paula à pilantragem de Wilson Simonal, do trabalho dos censores aos trejeitos de Caetano, passando pela androginia dos Secos e Molhados, Julinho não deixa pergunta sem resposta.

Dado como morto desde que o trote foi revelado pela imprensa, nos anos 70, Julinho de vez em quando dá as caras. Depois de conseguir autorização para incluir a entrevista no seu trabalho, Mário Prata se lembrou que não havia tratado de valores com o entrevistado. Pegou o telefone e ligou. "Esse negócio aí é com o Leonel", foi a resposta do outra lado da linha.

 

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