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Billie Holiday completaria 100 anos nesta terça-feira

No centenário da cantora, estudiosos investigam sua interpretação

Por João Marcos Coelho
Atualização:

Billie Holiday completaria 100 anos na terça-feira, dia 7. E ela, a maior cantora que o jazz já teve, mantém intactos, 55 anos após sua morte, seu poder de sedução, a magia sofrida de sua voz hesitante e a intensa carga emocional – sem paralelo – que nos tira de nossa zona de conforto e nos joga, desnucados, com nossas próprias contradições. Nós, o público, não cansaremos jamais de performances lancinantes de clássicos como Strange Fruit, Don’t Explain, Good Morning Heartache.

Enquanto o mundo continua curtindo sua arte, estudiosos e pesquisadores multiplicam-se tentando explicar este fenômeno que se firmou numa curta vida de 44 anos marcada pela prostituição precoce, drogas, prisões e racismo. A vítima perfeita, conceito fácil de se colar nela, mas longe da verdade, afirma o jornalista e pesquisador norte-americano John Szwed, autor do mais recente livro sobre a cantora, que está sendo publicado esta semana nos EUA: Billie Holiday: The Musician and The Myth (240 págs., Viking, e-book Amazon).

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Existem mais de quarenta livros sobre Lady Day, diz Szwed. “Todos descobriram que há muitas Billie Holidays: uma alegre, outra amarga; há o gritinho da Billie ‘little girl’, o rosnado da velha senhora; a Billie do início, a de meados da carreira, e a do final; a cantora internacionalmente conhecida, a Billie cercada por jazzmen e outra elegantemente vestida com violinos na retaguarda”.

Rigoroso e com agudo espírito investigativo, Szwed divide seu livro em duas vertentes claras: de um lado, revela pela primeira vez trechos que foram censurados da autobiografia Lady Sings the Blues, que Billie coescreveu com William Dufy em 1956; de outro, é o primeiro a analisar tecnicamente a arte do maior mito vocal do século 20.

Na segunda parte, adota postura radical. Rejeitando a tese de que Billie cantava expondo suas vísceras, Szwed a concebe preocupada em construir interpretações originais do que interpretava. Ou seja, Billie não era um ser humano despedaçado que expunha suas misérias no palco e levava por isso o público a chorar com ela. Apesar de sua vida pessoal ser mesmo despedaçada. Era uma profissional do canto.

A propósito, Szwed cita um dos apelidos de Billie, “Nossa Senhora das Dores” e a famosa frase da escritora Elisabeth Hardwick: “Você precisa ter alguém ao seu lado quando ouve Billie. Do contrário, pode se suicidar”. Mas apressa-se em esclarecer que ela precisa ser entendida como uma “grande intérprete”. O que chega a nossos ouvidos e mentes é o resultado de um processo voluntário e consciente e compreensão dos versos e de seu talento para recriá-los. E, se não tivesse passado pelos tormentos sexuais, sociais e das drogas, ainda assim seria a mesma cantora? “É evidente que ela revolve suas próprias emoções e memórias e as usa ao cantar”, admite Szwed ao Estado. “Mas, ainda assim, ela está atuando.”

Que arte é essa, no caso de Billie? Ela foi a primeira a desenvolver a técnica de microfone e desse modo estabelecer uma performance vocal meio cantando, meio falando. Passear em torno da nota convencionalmente certa, adejar em torno com vibrato. E sua voz de contralto era pequenininha, não chegando a duas oitavas. Mesmo sem saber ler música, “é a única cantora que conheço a ter a habilidade de retardar a nota em relação ao acompanhamento instrumental sem se perder; nenhuma de suas imitadoras consegue reproduzir isso. Como aprendeu a fazer isso, não sei.”

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Billie não era uma cantora de jazz nem de blues, diz Szwed. Ela não improvisava, apenas “parafraseava as melodias, como Lester Young. Mas ele parafraseava menos, queria contar uma história, e foi muito influenciado por ela”.

Nem era cantora de blues (gravou apenas uma dezena deles ao longo de sua carreira): “Quando começou a cantar, praticamente toda cantora negra era chamada de blues singer, cantasse ou não o blues. As cantoras brancas que interpretavam canções tristes eram chamadas de ‘torch singers’. Billie invadiu o chamado songbook branco, porém levando consigo o estilo musical negro”.

Orson Welles leva bofetada de Rita Hayworth por causa de Billie

Publicada em 1956, a autobiografia Lady Sings the Blues escrita a quatro mãos por Billie Holiday e o jornalista William Dufy, proporcionou à cantora 3.000 dólares e vendeu cerca de 14.000 livros no primeiro ano. Segundo John Szwed, muitos trechos foram cortados da edição final, principalmente os que envolviam episódios de Billie com personagens famosos do showbiz, cultura e política norte-americanas. Alguns dos que cruzaram com Billie: John Roosevelt, filho do presidente dos EUA; J. E. Hoover, o todo-poderoso da CIA; Leonard Bernstein e Ned Rorem, músicos clássicos; Bob Hope, Ava Gardner, Clark Gable, Clifton Webb e Lana Turner; e Elisabeth Bishop.

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A seguir, um trecho censurado que só agora é publicado em Billie Holiday, The Musician and the Myth, de John Swzed (Viking, março-2015):

"Orson Welles: em 1942, Welles rodava Cidadão Kane em Los Angeles. Numa passada por Nova York, foi a vários clubes no Harlem, tendo por companhia Billie Holiday. De volta a Los Angeles, também saíram juntos. Dolores del Rio, com quem Welles pretendia casar-se, ficou com ciúmes de Lady Day. O fato repetiu-se numa noitada no Onyx, clube de Los Angeles. Welles entrou com Rita Hayworth e, quando viu Billie, conta ela na primeira pessoa no trecho cortado do livro, “ele me abraçou e beijou. E me levou até a mesa onde estava Rita”. Enciumada, Rita deu uma bofetada na cara de Welles e se mandou”. Billie pediu-lhe desculpas, mas ele só respondeu: 'Hell, let her go'."

ENTREVISTA | John Szwed, jornalista e pesquisador

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'Ela foi exposta como drogada e criminosa'

O senhor analisa a autobiografia da cantora Billie Holiday no primeiro capítulo mostrando contradições e fatos que foram eliminados da edição final. Agindo assim, o senhor direciona o leitor para uma compreensão da artista como ser humano, aliás, como qualquer um de nós. É isso mesmo?

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Exatamente. Mas também é verdade que ela foi exposta ao público como drogada e criminosa como nenhuma outra figura do show biz antes dela. Para continuar trabalhando, ela teve de encontrar meios de forjar uma imagem mais aceitável. Assim, cada entrevista e cada artigo que escreveu serviram para este propósito.

O senhor afirma que encontrou muitas novas informações que vêm a público pela primeira vez em seu livro.

Os fatos e episódios cortados de sua autobiografia que discuto no capítulo 2 são novos para o público, sobretudo sua amizade com compositores, cineastas, magnatas e atores famosos. Igualmente, muito sobre o que escrevi sobre seu papel de coautora não era conhecido até agora. Também inéditas são as revelações do coautor do livro, o conhecido jornalista e ghost-writer William Dufy, feitas depois da publicação de Lady Sings the Blues.

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