Análise: Pulou do ápice direto para três décadas de autossabotagem

É uma lenda das mais tristes do show biz: talento explosivo alcança o auge e se perde em questões periféricas

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Por RICARDO ALEXANDRE
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Para toda uma geração que aprendeu a ouvir música no YouTube (não ria: são 64% dos adolescentes e 53% dos adultos americanos, mais do que em qualquer outra plataforma, incluindo rádio), Prince é aquele anãozinho com pinta de cafetão de filme ruim que irrompe no meio de While My Guitar Gently Weeps na introdução póstuma de George Harrison no Rock & Roll Hall of Fame. Não é pouca coisa: entre lendas vivas como Steve Winwood, Jeff Lyne, Tom Petty e o herdeiro Dhani Harrison, Prince emerge das sombras para metamorfosear o solo original que Eric Clapton gravou com os Beatles com tal senso de propriedade e virtuosismo, que leva a canção a outras galáxias sem se desviar um milímetro do tributo ali em curso e incorporar o próprio Clapton, mais Jeff Beck, muito de Hendrix, mais todo soul-funk e do rock negro em pouco mais de 3 minutos.

O Rock & Roll Hall of Fame é uma instituição beneficente e negociou a cessão do direito de imagem de Prince num dia bom. Porque o músico não gostava de internet, proibia suas músicas tanto no YouTube quanto nos serviços de música online. “A editora de Prince solicitou aos serviços de streaming para remover seu catálogo. Esperamos trazer sua música de volta o mais breve possível”, diz aviso no Spotify. Prince achava que a música na internet era uma moda e se sentia ultrajado que não pudesse receber antes das execuções. Como resultado, milhões de jovens fãs de música associam um dos cantores, compositores e instrumentistas mais completos de todos os tempos, este sim, a uma moda passageira dos anos 1980, em pé de igualdade, quem sabe, com o Spandau Ballet ou Information Society.

Prince foi encontrado morto na quinta-feira, 21 Foto: REUTERS|Lucas Jackson|Files

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É uma lenda das mais tristes – e não exatamente raras – do show biz: talento explosivo alcança o auge e se perde em questões periféricas que obscurecem o que ele sabe fazer de bom. Nesse sentido, Prince não conheceu a decadência. Pulou diretamente, do seu ápice criativo e comercial para três décadas de autossabotagem, desvios de rota, projetos abortados e excentricidades variadas.

Em 1988, ele vinha de uma inacreditável sequência de álbuns (1999, Purple Rain, Around the World in a Day, Parade, Sign ‘O’ the Times), todos Top 10 tanto nos EUA quanto no Reino Unido, uma fileira de singles (When Doves Cry, Let’s Go Crazy, Kiss, Purple Rain, Raspberry Beret, U Got the Look, todos Top 1 ou 2), combinando sucesso popular com respeito unânime. Foi quando, após anunciar diversos projetos que nunca viram a luz do dia, entregou um tal Black Album à gravadora só para, depois de 500 mil exemplares produzidos, avisar que havia tido uma epifania mística e entendido que o trabalho era “do mal”.

E o que sabemos de Prince desde então? Que ele foi a melhor coisa do Batman de Tim Burton. Que não conseguiu romper o contrato com a Warner e passou a se apresentar com a palavra “escravo” na bochecha; que trocou o nome de batismo por um símbolo esquisitão e exigia ser chamado de “O Artista”; que lançava mais discos do que éramos capazes de acompanhar, às vezes vendidos em seu site, às vezes em acordos de ocasião com gravadoras multinacionais; que ele brigou com o Radiohead por causa do YouTube; que virou Testemunha de Jeová e saía aos domingos para pregar sua fé na porta das casas das pessoas.

O que provavelmente você não sabia é que Prince foi tudo, menos acomodado. Pelo contrário, no meio de sua atordoante produtividade dos anos 1990, 2000 e 2010, há maravilhas para encher diversos álbuns irretocáveis. Há uma variedade que vai do hip-hop ao funk puro ao jazz, ao rock e o R&B e à música espiritual. Mas você não vai saber. Em uma era de fartura de música, é mais fácil conhecer a nova bandinha de samba psicodélico do Afeganistão do que Prince.

Sem filhos, ainda não se sabe como seu espólio será organizado. Não é improvável que Prince, já doente, tenha orientado seus advogados a proceder de forma ainda mais dura contra os meios digitais de distribuição de música. Não deixa de ser irônico que um dos maiores músicos de todos os tempos tenha gasto tanto tempo e energia protegendo sua música e que agora, quando entra finalmente para a história, seja tão difícil para o ouvinte médio se maravilhar com sua genialidade. Mas ela está lá, como um dia, quem sabe, perceberemos.

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RICARDO ALEXANDRE É JORNALISTA

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