Análise: A criança que vive em Jorge Mautner o salva de todo o mal

O artista que estabeleceu uma das relações mais honestas com a criação chega aos 75 anos como um garoto, felizmente, irrecuperável

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Por Julio Maria
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Jorge Mautner é uma criança. Uma criança de 75 anos. Não em sentidos beatificadores de ingenuidade, pureza, candura ou coisa assim, mas em sua relação desprovida de interesses com a criação. Se os outros embarcarem, será ótimo, mas quem deve se satisfazer primeiro será sempre ele. Alguns poucos grandes são assim. João Donato é assim. Suas primeiras ideias de música serão geralmente a música, livres da burilação excessiva da harmonia e outras regras seguidas por seus pares porque ele simplesmente não precisa delas para justificar a existência do que faz. Se não houvesse Bossa Nova, Donato estaria hoje exatamente onde está. Seu piano nunca respeitou a linha do tempo. Por Mautner, Gil e Caetano teriam economizado litros de saliva que usaram para teorizar sobre a Tropicália. Sua fome de engolir a amálgama do mundo é muito anterior a Domingo no Parque.

Imagem de Mautner usada na exposição 'Álbum', de 2007, do fotógrafo Leo Aversa Foto: Leo Aversa/Divulgação

Mas o preço da fidelidade a si é alto mesmo nas artes, e Mautner paga cada centavo. Dizer sempre o que quis, ou não dizer o que todos diziam, o tornou a ilha que temos de ir buscar. Sua pouca evidência nos meios o impede de fazer o caminho contrário e nos surpreender com uma incerta pelos ares. Azar dos que não vão a Mautner. Uma rápida passagem pelas duas caixas lançadas no ano passado pelo selo Discobertas, por exemplo, e você se depara com ele cantando versos como “a minha mão tremendo, segura a tua mão e é assim que eu te prendo no fundo do coração”, de Estrela da Noite, ou “Você sabe o que é a chuva, meu bem? É uma princesa que cai do céu. É a tristeza em forma de véu”, de Chuva Princesa. As duas apenas de seu primeiro disco, Para Iluminar a Cidade, de 1972. A criança de Mautner o salva da arrogância e do rancor. Muitos que ergueram fama com menos substância se encastelaram na certeza de terem se tornado superiores. Outros, que passaram a vida pregando discursos experimentas no deserto, dão a última cartada assumindo o personagem do gênio incompreendido. Uma rápida ligação para a casa de Mautner e a prova será tirada. Ele vai atender, dar a maior atenção ao interlocutor e sorrir muito. Como diz em suas entrevistas, é um otimista irrecuperável. Não deu muito certo quando tentaram domesticar esse filho de mãe católica iugoslava e pai judeu austríaco fugido do holocausto, levado aos terreiros de candomblé quando criança pela babá. Alguns discos dos anos 80 flagram uma frustrante operação para fazê-lo ser absorvido pelas massas que passaram a ouvir as rádios FM no início da década. Bomba de Estrelas, produzido por Liminha e Chico Neves, escala todo o mundo que respeita Mautner. Caetano, Gil, Pepeu Gomes, Moraes Moreira, Zé Ramalho. As canções ficam mais higienizadas, os ruídos desaparecem e Mautner, grande, se distancia do grande Jorge Mautner. Aos 75 anos, não há mais o que fazer. Graças aos deuses, essa criança não tem solução.

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