Amelinha, amiga de Belchior, lança disco com regravações do rapaz latino-americano

E assim como De Primeira Grandeza abre o disco de Belchior de 30 anos atrás, a música foi escolhida para iniciar a jornada de Amelinha pela obra do amigo

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Por Pedro Antunes
Atualização:

Tecnicamente, já era segunda-feira. O relógio marcava uma hora da manhã, mas, para Amelinha, o tempo e espaço se misturavam, entre lembranças e uma realidade com a qual não se queria viver. Nos televisores, jornais e rádio a notícia retumbava. Desaparecido, o amigo e músico Belchior havia morrido, aos 70 anos, em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul.

Cantora Amelinha Foto: Fabio Motta / Estadão

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O rapaz latino-americano morrera na virada de sábado para domingo – neste último dia, logo pela manhã de 30 de abril, a notícia da morte se espalhou. Amélia Cláudia Garcia Collares, conhecida como Amelinha, não foi capaz de permanecer na casa onde mora, em Niterói. Correu para ficar com a filha. Não atendeu ao inimaginável número de ligações telefônicas, ignorou pedidos de entrevistas. Respondeu somente a Thiago Marques Luiz, o produtor com quem havia gravado o último disco dela, Janelas do Brasil, em 2012. 

“Não sei direito porque atendi aquela ligação, mas isso aconteceu. E o Thiago começou a conversar comigo sobre Belchior, sobre uma ideia que ele tinha. Sugeriu que gravássemos um álbum com canções de Bel. Não sei direito dizer por que aceitei. Apenas fui. Sem pensar”, conta Amelinha, ao telefone, ao Estado. 

Amelinha viveu uma transição: do estado de transe, pelo qual passou sete dias introspectiva, na semana da morte de Belchior, ao que ela chama de “momento de leveza”, ao lançar o disco De Primeira Grandeza, pela Deck, uma reunião de dez canções escolhidas por memórias afetivas. A faixa que dá nome ao trabalho é a realização de um desejo de Belchior. 

Belchior a chamava de Mel; e ela o chamava de Bel. Em 1996, o cantor e compositor encontrou a companheira da turma do Pessoal do Ceará, como ficou conhecido o grupo de artistas e pensadores amigos de Fortaleza, e disse a ela que tinha gravado uma música e gostaria de ouvi-la na voz da amiga. “Ele me conhecia. Sabia que era uma música certa para mim”, conta Amelinha. A música em questão era De Primeira Grandeza, faixa registrada pelo artista na abertura de seu disco chamado Melodrama, de 1987. “Ele, na ocasião, cantou a música para mim, ao meu ouvido. Na época, não ouvi a música na versão gravada. Foi escutar a música somente no meu estúdio, no Rio de Janeiro, quando estava escolhendo o repertório para esse disco. Ao ouvir, percebi que ele tinha razão.” 

E assim como De Primeira Grandeza abre o disco de Belchior de 30 anos atrás, a música foi escolhida para iniciar a jornada de Amelinha pela obra do amigo, a quem conheceu ainda no início da carreira. A vibração bastante oitentista de Bel na versão original se transforma nos arranjos criados coletivamente, sob a direção artística de Thiago. As palavras sofridas de Belchior ganham pinceladas de drama refinadas com Amelinha – como se saíssem da sarjeta de um boteco recém-fechado e escorresse como lágrima em um show de tango em Buenos Aires, na Argentina. 

Belchior Foto: Rolando Freitas / Estadão

Thiago e Amelinha já haviam testado a parceria deles com a obra de Belchior com Galos, Noites e Quintais, música registrada por eles no disco dela Janelas do Brasil. Durante seus shows, Amelinha pedia pela volta do amigo, sempre ao final dessa canção. Belchior não voltou, infelizmente. E foi ao som de um coro Galos, Noites e Quintais, entre outras de suas mais famosas canções, choros e murmúrios que Belchior foi enterrado, no Parque da Paz, em Fortaleza. 

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Gravado no estúdio Canto da Coruja, em Piracaia, cidade a quase 90 quilômetros de São Paulo, durante quatro dias, Amelinha disse ter vivido uma experiência transformadora. O repertório inclui também os sucessos Paralelas, Alucinação, A Palo Seco, Mucuripe, Comentário a Respeito de John. Com uma banda de quatro integrantes – Estevan Sincovitz, Caio Lopes, Ricardo Prado e Ricardo Prado –, enfrentou o frio de agosto, os degraus difíceis de serem vencidos para quem recentemente teve problema nos joelhos. Superou também a dor da saudade de ouvir as canções que seriam gravadas nas suas versões originais. “A energia dele está pairando sobre nós”, diz. “Percebi que não tinha que ficar triste. Tinha que sorrir e ser feliz.”

Caixa reunirá seis discos gravados entre 1974 e 1982

 Morto aos 70 anos recentemente completados, em 30 de abril de 2017, Antonio Carlos Belchior criou, no seu desaparecimento, desde meados dos anos 2000, uma aura misteriosa ao seu redor. Quem era, afinal, Belchior, o cantor com discos considerados geniais. Mas há muito o que descobrir na discografia do trovador nascido em Sobral, no Ceará. 

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A gravadora Warner Music prepara, para ainda este ano, um novo lançamento para trazer luz à fase de transição de Belchior, com os seis discos lançados entre 1974 e 1982 – Alucinação, considerado o melhor deles, não está incluído porque foi lançado pela Polygram (hoje, Universal Music).

A caixa, uma edição limitadíssima, deve entrar em pré-venda ainda este ano e tem produção e textos assinados pelo jornalista Renato Vieira, repórter do ‘Estado’. Nela, seis discos com faixas-bônus. O pacote inclui Belchior (1974), Coração Selvagem (1977), Todos os Sentidos (1978), Era uma Vez um Homem e Seu Tempo (1979), Objeto Direto (1980) e Paraíso (1982). Entre as faixas-bônus estará a versão original da música Como Se Fosse Pecado, censurada na época e lançada com outros arranjo e vocal. 

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