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Alunos de projetos sociais mudam a cara da música clássica

Especialistas definem o impacto de projetos de inclusão social na cena clássica nacional

Foto do author João Luiz Sampaio
Por João Luiz Sampaio
Atualização:

Equilibrando-se com o contrabaixo, Gustavo desce os dois lances de escada da pequena casa de dois cômodos que divide com a mãe e o irmão em Heliópolis, na zona sul de São Paulo. A rodinha acoplada ao instrumento ajuda no caminho até a Estrada das Lágrimas. Uma breve caminhada e ele já está pronto para os primeiros ensaios da manhã. O trajeto ele repete diariamente. Até a sala de aula, o caminho não dura mais do que 15 minutos – mas é suficiente para levá-lo em direção a sonhos cada vez mais altos. “Estar no palco fazendo música é algo que nos transporta para outros lugares. Mas não é só isso. Na verdade, o que fazemos aqui é quebrar diariamente estereótipos sobre quem somos, sobre o que é ser um cidadão, sobre o que se espera da gente”, ele diz, enquanto caminha.

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A rotina de Gustavo, hoje com 19 anos e aluno do Instituto Baccarelli, é repetida por milhares de jovens, integrantes de projetos de educação musical com foco na inclusão social. Nos últimos anos, eles não apenas cresceram em quantidade: tornaram-se protagonistas do meio musical erudito brasileiro. Não há levantamentos oficiais. Mas uma rápida conta oferece uma ideia: no Baccarelli, que este ano completa 20 anos, são 1.600 alunos; na Escola de Música do Estado de São Paulo, 1.300; no Projeto Guri, 50 mil, em todo o Estado. É um número expressivo de crianças, adolescentes e jovens sendo introduzidos na música – que cresce ainda mais quando se leva em conta projetos em Estados como Pernambuco, Bahia ou Rio de Janeiro. Em comum entre eles, o fato de estarem formando uma nova geração que começa a ocupar o cenário musical brasileiro – e promete revolucioná-lo.

“O que está em andamento é uma mudança estrutural. Estamos formando artistas capazes de resgatar a função social da música clássica, que acabou se perdendo”, diz o compositor Paulo Zuben, diretor da Emesp. “Em um momento em que se discute a relevância da música na sociedade, parece claro que ela virá não das instituições, mas dos músicos. São jovens com uma postura ativa, conscientes da busca por novos caminhos”, completa. Edmilson Venturelli, diretor do Instituto Baccarelli, concorda. “Estamos falando de jovens que entendem a música não apenas como uma carreira, mas como ferramenta para a compreensão de si mesmos e do outro. Isso tem um impacto claro na cena musical, acreditamos nisso”, explica.

Gustavo de Souza. Nascido em Heliópolis, ele estuda contrabaixo no Instituto Baccarelli e cursa a Unesp Foto: Amanda Perobelli|Estadão

Gustavo de Souza começou na música aos 11 anos, cantando em um dos corais do Baccarelli. A ideia de inscrevê-lo foi da mãe. Resolveu tentar um instrumento. “Como eu era alto, sugeriram o contrabaixo”, ele lembra. Entre seus professores, Alexandre Rosa, músico da Osesp. Foi uma mudança. “Aqui em Heliópolis a música que se ouve é mais a popular. Mas eu fui conhecendo o repertório clássico e me apaixonando.” Um momento fundamental aconteceu em 2012. “O maestro Zubin Mehta veio reger a Sinfônica Heliópolis. Ali eu me dei conta da intensidade de fazer música e de como eu queria estudar cada vez mais, estar pronto para aquilo.”

Dificuldades. O interesse de Phillips Thor Emidio, de 23 anos, pela música também remonta à infância. Morador do Jardim Maia, no Itaim Paulista, ele começou a tocar tuba na igreja – instrumento que mais tarde trocaria pelo eufônio. Mas o apoio em casa nem sempre esteve presente. “Eu fui crescendo, queria tocar. Dava muita briga em casa. Para você ter uma ideia, eu tenho um sobrinho de 16 anos que já está trabalhando, ajudando em casa. Então tinha uma cobrança. Mas a música falava mais alto, sempre.” Em 2010, matriculou-se na Emesp. Mas precisou deixar o curso por não ter como pagar a condução. Com a ajuda do professor Ricardo Camargo, continuou a estudar. E entrou na Banda Sinfônica Jovem do Estado. Voltou à Emesp. E, no ano passado, foi aprovado para estudar em Portugal. “Eu já havia sido aprovado para ir estudar nos EUA, mas apesar de ter bolsa, você precisava provar ter uma renda anual de R$ 70 mil. Precisei desistir.” Agora, ele busca um financiamento coletivo para a viagem.

Caminhos. Ulisses e Marly Montoni. Foto: Amanda Perobelli|Estadão

Colega de Emesp, o percussionista Christopher Alex Vieira de Souza, de 23 anos, morador de Interlagos, chegou à música como uma maneira de não repetir de ano. “Quem tocasse na fanfarra da escola ganhava pontos extras. Então, eu fui.” Ele passou de série – e descobriu uma paixão. “Comecei no trombone. Mas encontrei na percussão uma maneira perfeita de expressar meus sentimentos.” Para ele, é disso que se trata a música. “Aos 14 anos, perdi meu pai. Fui caminhar na Avenida Paulista e tinha um cara tocando violino. Eu parei para ouvir e aquilo me fez muito bem. Entendi que queria fazer o mesmo com outras pessoas e a música era o caminho. Quando penso no futuro, penso nisso, em como fazer da minha música uma ferramenta de ensino para os outros. Quero ser o melhor percussionista e ser o melhor, para mim, é formar pessoas por meio da arte.”

Ana Claudia, Marcus e Christopher, da Emesp Foto: Amanda Perobelli|Estadão

A música como transmissão de um ideal: é disso também que fala a contrabaixista Ana Claudia Machicado Torres. Nascida na Bolívia, está há pouco mais de 6 meses no Brasil e, depois de passar pelo Baccarelli, hoje é aluna da Emesp. O contrabaixo ela escolheu porque era um ambiente sem mulheres. “Eu gostava de ser a única mulher em um campo de trabalho. Mas hoje penso diferente. Quero ajudar a formar outras garotas, mostrar que elas podem fazer o que quiser.” Marcus Vinicius, colega de Ana Claudia no instrumento, pensa parecido. “Eu quero ser lembrado por ser um espelho para outros jovens, ajudando a mostrar o quanto é importante a valorização da cultura na hora de se pensar no crescimento de um país.” Como se faz isso? De modo coletivo, diz o músico, de 18 anos. “No momento que tocamos em uma orquestra, estamos todos conectados pelo mesmo sentimento, pela mesma energia.” Fazer música de câmara; repensar o papel de uma orquestra sinfônica na vida de uma cidade; criar grupos próprios; dedicar-se à música brasileira; promover intercâmbios de repertórios. Ideias como essas se repetem na conversa com representantes da nova geração de músicos brasileiros - e apontam para um cenário musical mais dinâmico, aberto e inclusivo. É essa ao menos a expectativa de músicos, gestores e especialistas, que têm se dedicado a projetos de educação musical e inclusão social. Não se trata de um fenômeno paulista. Em Salvador, por exemplo, há o Neojiba (Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia), cuja orquestra acaba de realizar uma turnê pela Europa, com a pianista Martha Argerich como solista. É um de muitos símbolos de uma crescente descentralização, que está espalhando orquestras por todo o País. “Projetos como o Neojiba, o Baccarelli, a Emesp ou o Guri tratam de uma questão importante hoje. Vivemos em um mundo em transformação e a vida musical é parte disso. Professores e alunos querem ter as ferramentas para lidar com essa realidade. A percepção é de que só ficar na sala de aula estudando ou no palco tocando não basta. É preciso sair para a rua, conhecer o público e expandir o mercado, tornando-se também empreendedor. Além disso, muitos músicos formados nesses projetos carregam o desejo de passar o conhecimento adiante, de ensinar”, afirma Paulo Zuben, da Escola de Música do Estado de São Paulo.  O desafio passa a ser, então, criar um ambiente pedagógico em que essas questões sejam discutidas naturalmente. Um aspecto fundamental é o ensino coletivo. “Fazer a música coletivamente traz outra dimensão, outra perspectiva social e artística”, explica Zuben. Edmilson Venturelli, do Instituto Baccarelli, segue na mesma linha. “Para essa nova geração, a música tem outro significado. Em primeiro lugar, há a paixão, o prazer de tocar. E, além disso, para eles fazer música é descobrir novas possibilidades. É por isso que eles são mais abertos, mais dispostos a experimentar”, diz, citando como exemplo o envolvimento dos alunos do instituto com novos projetos, como os concertos em escolas e hospitais de Heliópolis ou o Baccarelli na Rua, com concertos no Armazém da Cidade, na Vila Madalena.  Para Zuben, há uma onda, um movimento claro em ação. “A atividade musical tradicional vive sob duas pressões. De um lado, você tem os governos, os financiadores públicos, que exigem dos projetos um caráter público, que abrace ideais como gratuidade, diversidade, a busca por novas plateias. Do outro lado, há essa nova geração de músicos, que já enxerga o fazer musical dessa forma, que quer quebrar a barreira entre a música clássica e o público. Dessas pressões, nasce uma nova onda. Quanto mais tempo demorar para os projetos se darem conta disso, pior será.” Esse movimento tem se espalhado pelo mundo. E a experiência brasileira tornou-se uma referência importante. A Emesp, por exemplo, tem parcerias com instituições como a Juilliard School, de Nova York, ou o Conservatório de Amsterdã. O Baccarelli, por sua vez, recebe frequentemente músicos estrangeiros para master classes. Este ano, artistas de orquestras como a Filarmônica de Viena estiveram no instituto, que está fechando contratos com universidades americanas para aulas a distância, via Skype. “Sempre que recebemos artistas ouvimos eles falarem sobre o quanto foi bom o contato com nossos alunos, com esse espírito de envolvimento e paixão pela música”, ressalta Venturelli. Um exemplo claro disso tem sido o trabalho da violista americana Jennifer Stumm. Há dois anos, ela criou no interior de São Paulo o Festival Ilumina, que realiza sua terceira edição em janeiro. A ideia é reunir jovens músicos para tocarem juntos e trocarem experiências. “A fagulha inicial se deu em uma visita que fiz à Emesp, em 2014. Fiquei impressionada”, contou ela em entrevista recente ao Estado. “O talento, a humanidade, o desejo de se sair bem mesmo em face de desafios socioeconômicos: eu nunca havia experimentado isso na minha vida. E a experiência deu forma à minha crença de que a música clássica deve ser dinâmica, viva, transformadora.” Segundo ela, a maior parte dos músicos que participam do Ilumina vem de comunidades carentes. “Para eles, a música é mais do que uma forma de arte, é uma forma de sobrevivência. Isso é algo raro no Hemisfério Norte e é por esse motivo que as vozes deles precisam ser ouvidas em todos os lugares. Há um potencial enorme surgindo nas periferias. Em apenas dois anos de Ilumina, 50% dos nossos jovens já foram aceitos em instituições internacionais. O Brasil deve ter muito orgulho e dar todo o apoio possível a esses artistas.”Cantores criam produtora em busca de espaço

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Ulisses é tenor, Marly é soprano. Os dois se conheceram em 2003. Cantavam no Coral Jovem do Estado de São Paulo. E ensaiavam La Traviata de Verdi, em Santos. A ópera acabou cancelada. Mas a paixão ganhou força. E dura até hoje.

O início da carreira dos dois é parecido. Em casa, não havia músicos. Mas, na dele, havia um tio, que gostava de ouvir os Três Tenores. Na dela, um irmão, que ouvia o Queen. “Eu comecei a ouvir com ele e fui gostando”, ele lembra. “Já eu ouvi a gravação do Freddie Mercury com a Montserrat Caballè. E resolvi que queria cantar como ela”, diz Marly. O começo não foi fácil. “Eu não sabia por onde começar”, conta Ulisses. “Venho de uma família humilde, meus pais nem sabiam onde me levar para estudar”, completa Marly. No caso dele, uma professora de física apontou uma direção, quando o inscreveu no Coral da USP. Ela, aos 16 anos, foi para o Projeto Guri.

Não pararam mais. Há alguns anos, Ulisses fez um concerto em Araçatuba. “De repente, o público estava cantando comigo. E eu soube que precisava continuar.” Marly conta que houve momentos em que pensou em desistir. “Não havia oportunidades para estudantes como hoje. Mas era só eu cantar um pouco para ver que não tinha jeito”, brinca.

A parceria se manteve na vida profissional. “Nós entendemos cedo que precisávamos, além de cantar, buscar espaços”, explica Ulisses. Criaram uma produtora e, juntos, gravaram dois discos. O terceiro, só dele, será lançado este mês, com canções italianas. Marly correu atrás de aulas de idiomas. Estudou teatro. E foi parar no Theatro São Pedro, onde é membro do elenco estável. Já cantou papéis como Fosca, Aida, Norma. Todas mulheres fortes. Coincidência? “Acho que não”, ela responde, sorrindo.