A paixão, segundo Plácido Domingo

Com repertório que foi do clássico ao popular, tenor emocionou o Rio; o pianista chinês Lang Lang solou versão de 'Tico Tico no Fubá'

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Por João Luiz Sampaio
Atualização:
Com repertório que foi do clássico ao popular, Plácido Domingo emocionou o Rio Foto: Manuela Scarpa/ Divulgação

Para aqueles que acham difícil acreditar na capacidade da música clássica de despertar paixões, talvez tenha sido surpreendente o cartaz que, durante a apresentação do tenor Plácido Domingo na noite de sexta, 11, no Rio, foi levantado por um grupo de fãs: "Plácido, nós te amamos muito!!!". E o que há para não amar? Aos 73 anos, com cinco décadas de carreira nas costas, ele cantou como tenor, como barítono, regeu a Orquestra Sinfônica Brasileira. E, com um carisma difícil de igualar, comandou um programa que o levou de árias de ópera ao universo popular - caminho que, é justo dizer, nem sempre esteve longe dos limites do bom gosto musical.

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A primeira parte do programa, apresentado na HSBC Arena - um ginásio esportivo utilizado normalmente para shows - foi a mais bem comportada, dedicada quase que exclusivamente à ópera. De cara, dois agrados ao público brasileiro. Domingo foi o primeiro a subir ao palco e, à frente da Sinfônica Brasileira, regeu a famosa abertura de

O Guarani

, de Carlos Gomes - ópera que ele interpretou e gravou, como cantor, nos anos 1990, na Alemanha e nos Estados Unidos; e, em seguida, a soprano espanhola Ana Maria Martínez interpretou a

Ária das Bachianas Brasileiras nº 5

, de Heitor Villa-Lobos, com regência do maestro Jesus Rodríguez e o naipe de violoncelos da OSB liderado por David Chew.

Domingo começou a carreira como barítono, mas logo passou ao registro de tenor, com o qual construiu sua fama. Nos últimos anos, porém, tem colocado em seu repertório papéis escritos para vozes graves - e, no Rio, interpretou trechos de três deles: as árias

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Nemico della Patria

, da ópera

Andrea Chenier

, e

Eri Tu

, de

Um Baile de Máscaras

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, e o dueto

Mira Dacerbe Lacrime

, de

Il Trovatore

. Houve tempo ainda para o pianista chinês Lang Lang, com regência de Eugene Kohn, interpretar o último movimento do

Concerto para Piano e Orquestra nº 2

, de Rachmaninoff.

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A segunda parte começou com Domingo mais uma vez no palco, cantando

The Impossible Dream

, do musical

Man of La Mancha

. Bastaram os primeiros acordes para que o público, pouco empolgado na primeira parte, suspirasse de felicidade. "Ah, isso é lindo demais!", exclamou uma senhora quando, na sequência, pôde-se ouvir a introdução de

Tonight

, de

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West Side Story

. E ela deu sorte. "Besame mucho! Besame mucho!!!!" - foi só pedir que logo os acordes iniciais do bolero se fizeram ouvir pela arena. "Se tivesse Granada seria perfeito". E não é que teve? Assim como teve

I Could Have Danced All Night

, trechos de zarzuelas (operetas espanholas) e o dueto

Lippen Schweigen

, da

Viúva Alegre

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, de Franz Lehár. Domingo então apresentou a surpresa que vinha anunciando nos últimos dias - a presença da cantora Paula Fernandes, com quem fez dueto em

Garota de Ipanema

e

Cidade Maravilhosa

- com direito à participação da orquestra e jeitos e trejeitos de Lang Lang no acompanhamento (o pianista também solou, à frente da orquestra,

Tico Tico no Fubá

, em versão que gravou para o disco oficial da Copa do Mundo do Brasil).

Apresentações como a de sexta-feira, na esteira do sucesso obtido pelos Três Tenores em seus concertos na véspera das finais das copas do Mundo de 1990, 1994 e 1998, costumam ser interpretadas de maneiras distintas. Seriam uma celebração da música - de todas as músicas -, por meio do talento de grandes ícones da música clássica, distantes de um pedestal no qual costumam ser colocados no cotidiano? Ou espetáculos em espaços inadequados, com orquestra e artistas geralmente mal microfonados, transformados em cantores de churrascaria - e visivelmente desconfortáveis em um repertório que não conhecem bem o suficiente?

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Talvez um pouco dos dois. O sucesso de concertos como esse dependem, afinal, do carisma dos artistas envolvidos, da construção de espetáculos capazes de envolver o público em uma proposta artística muitas vezes questionável. E, acima de tudo, da percepção de que, em uma arena esportiva, qualidade musical é tão importante quanto a chance rara de ver sobre o palco artistas que, normalmente, conhecemos apenas por gravações. No fundo, o concerto é uma celebração do espaço que Domingo conquistou no cenário cultural do ocidente - e de sua capacidade de, ao repetir uma fórmula antiga, manter a ilusão de estar constantemente se renovando.

Nesse sentido, exigir o desempenho rico em filigranas e detalhes interpretativos que se espera em uma sala de concertos é não apenas injusto como desnecessário, um exercício inútil. Da mesma forma, porém, programar um arranjo para piano e orquestra da trilha do filme

Super Homem

que, aos poucos, se transforma na

Aquarela do Brasil

também é desafiar o mais aberto e livre de preconceitos dos corações musicais.

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