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Romance inédito faz a despedida humanista de José Saramago

Português ganhador do Nobel de 1998 deixou três capítulos escritos de ‘Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas’

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Por Ubiratan Brasil
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O português José Saramago (1922-2010) era movido especialmente por questões humanitárias quando escrevia. Assim, em 2009, quando ainda lutava contra uma grave doença, iniciou o rascunho de um romance no qual trataria do comércio de armas. O ponto de partida era uma história que julgava ter lido no romance L’Espoir, de André Malraux: uma bomba lançada durante a Guerra Civil Espanhola que, além de não ter explodido, ainda ganhou um bilhete irônico: “Esta bomba não explodirá”.

Assim, aliada à questão que o intrigava de não conhecer nenhum caso de greve na indústria armamentista, a história inspirou o romance Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas, do qual Saramago escreveu apenas os três primeiros capítulos, interrompidos pela morte do escritor, em junho de 2010. 

O escritorJosé Saramago Foto: José Patrício/Estadão

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“O que estava escrito era uma versão definitiva. O romance poderia não estar completo, mas o que agora é publicado é um texto acabado. A morte não o interrompeu – Saramago deixou de escrever porque necessitava mudar de caminho, o que exigia uma investigação. Ele estava nesse ponto quando a morte lhe chegou”, conta Pilar del Río, mulher do escritor, justificando a publicação do livro, lançado aqui pela Companhia das Letras, ao mesmo tempo em que saem edições em Portugal e também em espanhol.

Todas versões trazem textos do ensaísta espanhol Fernando Gómez Aguilera, do escritor italiano Roberto Saviano (Gomorra, Zero Zero Zero), além de ilustrações do romancista alemão Günter Grass. A brasileira é mais fornida, pois reproduz artigo do antropólogo Luiz Eduardo Soares.

“Esses coautores foram escolhidos pela proximidade afetiva e intelectual”, conta Pilar. “Saramago não conhecia Saviano pessoalmente, mas eles se corresponderam e Saramago defendeu o direito de seu colega italiano escrever mesmo pressionado pela máfia, além de pressionar a sociedade a proteger quem revela o lado obscuro dessa mesma sociedade.”

Já Aguilera acompanhou pessoalmente o processo criativo, visitando o casal em sua residência. “Quando trabalhou como editor, Saramago publicou os livros de Günter e o admirava como poucos”, completa Pilar. “Já Luis Eduardo tem ideias muito claras sobre violência e a resposta que a sociedade pode dar, o que era absolutamente necessário.”

Os três capítulos deixados por Saramago apresentam Artur Paz Semedo, trabalhador da fábrica de armas Produções Belona S.A. Funcionário exemplar, nunca questionou a finalidade dos produtos que ajuda a construir, o que provoca irritação de sua mulher, Felícia, pacifista radical.

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Pilar acredita que o romance, cujo título é tirado de Exortação da Guerra, de Gil Vicente, indica um caminho semelhante ao de Caim. “Se, em Caim, o assunto central é o poder que as religiões exercem sobre as consciências, em Alabardas, o foco volta a ser o poder, agora usando as armas para impor regras religiosas e manter os homens sob controle.”

A obra traz ainda anotações feitas pelo autor, inclusive a forma como pretendia encerrá-lo: “O livro terminará com um sonoro ‘Vai à merda’, proferido por Felícia. Um remate exemplar”.

ALABARDAS, ALABARDAS 

Autor: José Saramago

Editora: Companhia das Letras (112 págs., R$ 27,50)

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