Política, infância, Rio antigo, jornalismo, amigos. As reminiscências de Fernando Pedreira, que ele registra em livro, aos 90 anos de idade, se espalham meio desordenadamente por 408 páginas de um volume denso, dividido em quatro partes, sem hiatos de capítulos e, vai aí certo exagero, quase sem parágrafos para se respirar. Não é, no entanto, de assustar. Mesmo que a edição pareça um tanto pesada, o texto corre coloquial e divertido, cheio de nomes de gente, lugares, pássaros, anedotas e historinhas que deliciam a mente de jovens curiosos e, principalmente, de veteranos leitores que nesse Entre a Lagoa e o Mar terão o prazer de reconstruir com o autor sete ou oito décadas da história do Brasil.
Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente e amigo desde os anos 1950, retrata bem esse quadro na Carta a Fernando, ou Apresentação, escrita depois de ler a primeira parte, de cento e poucas páginas, provavelmente em 2006. Quem lhe levou os originais foi outro amigo, Roberto Gusmão, companheiro da primeira militância política, na União Nacional dos Estudantes (UNE), nos anos 1940/1950. Foi nessa época que Pedreira se tornou amigo de um terceiro Fernando, o Gasparian, de quem seria sempre próximo, vida afora. Fernando Pedreira, Fernando Gasparian e Fernando Henrique Cardoso compartilharam ideais e experiências memoráveis.
Pedreira abre sua extensa, e ainda inacabada narrativa, lembrando a mudança do Rio de Janeiro para São Paulo, aos 30 anos de idade, quando rompeu com o Partido Comunista – ele e um punhado de camaradas, entre os quais Osvaldo Peralva, Mário Schenberg, Agildo Barata... “virtualmente toda a redação da Voz Operária, órgão central do PC, e toda a cúpula do aparelho de coleta de fundos do partido em São Paulo”. Era o ano de 1956, “o ano da Revolução Húngara e do seu brutal esmagamento pelas tropas soviéticas”. Fernando Pedreira tornou-se jornalista profissional, primeiro no Diário de S. Paulo e na Última Hora e, enfim, no Estadão.
As redações pelas quais passou, especialmente a de O Estado de S.Paulo, do qual foi diretor, permitiram a Pedreira acompanhar de um balcão privilegiado os acontecimentos nacionais. Ele estava em Brasília, em 1964, quando João Goulart foi derrubado. Nesse período, conviveu com outros jornalistas de destaque, como Flávio Tavares, Carlos Castelo Branco e Evandro Carlos de Andrade. Intelectuais como Rubem Braga, Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Flávio Rangel, Carlos Scliar e Millôr Fernandes também são lembrados com carinho em suas reminiscências.
Os relatos sobre sua longa passagem pelo Estado são marcantes. De Julio de Mesquita Filho a seus filhos, Julio de Mesquita Neto, Ruy Mesquita e Luiz Carlos Mesquita, o livro registra cenas de rotina na redação e a atuação dos diretores do jornal depois do golpe militar de 1964, movimento que o Estado apoiou e depois repeliu. Pedreira lembra, por exemplo, a fúria demonstrada pelo Doutor Julinho (Julio de Mesquita Filho), num restaurante de Nova York, quando o governo Castelo Branco cancelou as prometidas eleições presidenciais de 1965, cortando o futuro de Carlos Lacerda, virtual candidato.
Fernando Pedreira foi adido de imprensa da representação do Brasil na ONU em Nova York e da embaixada brasileira em Washington, durante o regime militar. Mais tarde, no governo Fernando Henrique, foi embaixador na Unesco em Paris. Esse tirocínio diplomático somou novas experiências à sua carreira de jornalista. Pedreira abre longos parênteses para falar de política internacional e revela, em paralelo, detalhes de seus amores, entre o primeiro e o segundo casamento. Escreve com naturalidade e bom humor. O texto desmente – ou confirma – o que ele diz, ao descrever seu próprio perfil. Assim:
“Sou um tímido, sempre serei. Escondi-me por trás da palavra escrita. Suo muito nas palmas das mãos, demais. Muitas vezes, antes de dar a mão a um interlocutor, um recém-chegado, tento enxugá-la disfarçadamente nas calças, ou na aba do paletó, para ocultar o vexame; às vezes, emudeço, já não sei o que dizer; me torço e retorço por dentro, sem motivo nenhum”. A timidez estende-se ao telefone, que ele só atende quando não há alguém por perto, sempre imaginando que a ligação é para ele.
Pedreira concluiu o primeiro volume de Entre a Lagoa e o Mar, em 2015. Se ele se refere a primeiro volume, supõe-se que a história vá continuar. Interrompeu suas lembranças falando dos tempos de menino, quando ia passear na fazenda da família no Espírito Santo, onde se divertia com o burro Umbigudo, o garanhão Campolino e a égua Gasolina, bichos de estimação de sua infância.ENTRE A LAGOA E O MARAutor: Fernando PedreiraEditora: Bem-Te-Vi (428 págs.,R$ 74)